sexta-feira, 30 de novembro de 2007


O poeta Amadeu Baptista foi galardoado com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente, com a obra "Poemas de Caravaggio".

Foram ainda atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.

Este prémio, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.

Dissimulação








Doces encantos dissimulados
numa dança nocturna ao luar
numa Lisboa bonita que queria
entranhar de novo

Chegamos juntos ao raiar da aurora
contamos os sonhos crepitantes, nas estrelas
cadentes e quentes

E já de manhã
pensei sonhar longe
do teu perfume de ocasião
das tuas combinações lunares
esfumadas nas cores azuladas da manhã
e afinal estavas lá ardente
sempre presente

Foram noites seguidas inebriados
na superior constelação
de corpos unidos
numa dança divina
de deuses subidos ao Céu
entumecidos pela razão de loucura

Quis-te assim
até à aurora da vida
e sem nunca te acordar

Quis-te assim até à aurora
pela vida fora sem ter
sem ter de acordar

Quis-te, ainda te tenho
a eternidade não tem
tempo definido

A Sombra das Mágoas

Associei-te ao vento
e pude ir contigo
aliciado encostado
imerso na fantasia
sem mágoa
ou fuga premeditada
Fui de mão dada
no turbilhão
da vibrante manhã
sem o sono
o purgatório
atormentado
apenas olhei
com olhos de amor
de dar a vida
sem hesitar
Apenas no rodopio
no vento
incerto
a provação
do deserto
e podia apenas sorrir
amar
descansar a alma
e ias nua
de preconceitos

As mágoas fugiram
num destino incerto
as mão sentiram
o afecto bem de perto
Não escolhi sombras
nem persegui conceitos
nunca encolhi os ombros
nem na pior das maleitas
Fui levado no vento
na profusão de amor
esquecendo as sombras e a dor
Apenas senti um abraço
forma quente de me saciar
apenas um sorriso desencantar
Apenas a luz
na sombra das mágoas
o amor e tudo o que seduz
desmedido sem palavras
apenas ensinando
a VIVER
E deixei de ter medo
da sombra
do ultimato de futuro
que não quero saber
quero apenas o presente
sem sombras
ou trevas anunciadas

www.manuelmarques.com




Cada momento que me deste
Foi dado uma só vez....
E naquele enorme círculo,
Que nos acolheu,
Não existe enternecimento
Para os que não têm coragem
E permanecem no fingimento!
Aquele enorme círculo da noite...

É tarde, mais tarde já será tarde.

O tempo apaga tudo menos
a linha branca que, como uma aura,
circunda o teu rosto.

O tempo apaga tudo menos
a triste dor do que não foi vivido.
Liliana

Do plágio

Diz-nos a nossa querida sócia Piedade Sol, a propósito do meu último post, trata de proteger o blogue contra o copy and paste, não está protegido, e plágios já há muitos.

Depois de debatido o assunto no seio da administração, entendemos que não vale a pena proteger o blogue contra o "copy and paste", situação que apenas dificulta um pouco tal situação.

Quem quer plagiar um texto, fá-lo na mesma. Entrando na pele do plagiador, não me parece que o facto de não dar para fazer "copy and paste" o demova das suas ideias, pois o benefício excederá largamente o pequeno esforço que terá.

Por outro lado, o facto de não se permitir o "copy and paste" afastará, e aqui sim, que os nossos textos sejam usados noutros blogues, situação que prejudicará a divulgação do excelente trabalho dos nossos sócios.



Tiago Nené

Sussurros e poesia-2ºFôlego



Foto por Nuno Reis http://www.noir-sur-blanc.blogspot.com

Se alguém te perguntar se estás triste, sorri e mente. Não mostres os teus olhos vermelhos porque os homens preferem vê-los pintados de outra cor. Quando sentires frio dentro de ti, cobre-te de luxúria e prazer e espera que o teu corpo aqueça. Por precaução, costura o teu passado no decote e espera que num momento mais quente o rasguem de olhos fechados para não o verem...o mundo é mais compreensivo quando é cego.
Depois embrulha o teu corpo numa fita veludo e aguarda que um olhar te deseje como presente, mas não esperes receber flores da mão que te despir. ..porque as rosas são para os contos de fadas e tu perdeste a tua magia quando arriscaste amar a sério alguém. Agora do amor que sentes só mereces uma coroa de espinhos e as flores nunca serão para ti.
Então não chores nessa janela porque ninguém te vê por detrás desse vidro empoeirado , és invisível aos olhos de quem por ela passa . Sempre foste assim, apenas já não te lembravas de como era senti-lo...
É por isso que te refugias nas palavras como um vagabundo que procura abrigo em cada canto da rua? Não encontras palha para fazer o teu ninho e então gritas com elas para libertares toda a tua fúria contida. E porque gostas de manter aquela imagem suave e doce que acalma os outros sorris...e quem te acalma a ti, quando sentes que vais explodir em pedaços? Olhaste bem em teu redor?
Não te admires se não vires ninguém e não te belisques porque não é um sonho...é apenas o teu maior pesadelo.



The Arcade Fire - Rebellion (Lies)


Porquê ter medo da solidão
se a solidão é a tua única companhia?
Porque choras quando olhas
Para as paredes vazias?
Foram só recordações que delas arrancaste...
Tens tela e pincéis
Então, porque não pintas novos quadros?
Tens tantas cores nos reflexos das tuas lágrimas
Porque não tentas
pintar um arco-íris nos teus olhos...
Não desistas
De imaginar que salpicas o céu
Só porque Deus
Fez os teus olhos com a cor da terra...
Porque a tua imaginação
Tem asas
Sabes bem que o chão nunca poderá ser a tua casa...

Se tiveres de voar sozinha, então não receies a solidão do teu voo porque os pássaros abrirão caminho por entre as nuvens e o sol não te faltará. Tu és como eles e vives cantando sentimentos por isso nunca te pedirão que silencies a tua dor nem que escondas os teus desejos por conveniência só porque temem as tuas tempestades.
Tens nos dedos a força da liberdade das palavras e a coragem para encher o céu com palavras apaixonadas mesmo que o mundo teime em caminhar com os olhos postos no chão...
Pelo menos tu sabes como fazer dos teus lábios rebuçados e escolhes livremente as bocas que os poderão provar... não te limitas a distribuir a mil porcos os teus beijos como se fossem guloseimas só porque por eles salivam.

Por isso...

Beija estes lábios
que em chocolate
foram moldados
e deixa-te ficar assim
perdido na minha boca
até que o meu corpo
se ofereça a ti como sobremesa.
Depois com o meu coração nas tuas mãos
caminha lentamente
até aquela janela empoeirada onde eu chorava...
Então, abre-a com cuidado
para eu não a ouvir gemer
e solta-me com os olhos fechados
porque eu só
sei voar na escuridão...

Daniela Pereira in Afectos Obsessivos-A poesia curiosamente sem açúcar,Edições Ecopy

Enchimento de chouriço


Estava a pensar fazer uma análise da ausência de banda desenhada nos quiosques e papelarias em Portugal - coisa que dura há uma década - mas como estou um tanto ou quando deprimido (depressão aqui-natalícia), resumo-me a picar o ponto por esta vez e deixar aqui uma capa histórica, Super-Homem 100, quando a banda desenhada nos quiosques e livrarias de Portugal era às dezenas (oh tempo, volta para trás...).
E ainda por cima nem consegui encontrar à venda o Homem-Aranha 64 este mês...

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

SEIVAS DE INQUIETUDE


É uma honra, um prazer divulgar e convidar todos, para o segundo lançamento da obra SEIVAS DE INQUIETUDE, de José Miguel Lopes, a realizar no próximo dia 5 de Dezembro (quarta-feira), às 17 Horas na CASA DE FERNANDO PESSOA (Rua Coelho da Rocha, 16 - Campo de Ourique - Lisboa)

“O poeta não é o que nomeia as coisas, mas sim o que dissolve os nomes, o que descobre que as coisas não têm nome e que os nomes com que as chamas não são seus”


(citando Octávio Paz, in o Macaco Gramático, pp 88)

A forma de...

Conhecer a forma de conhecer
estudar a forma de estudar
matar a forma de matar
beber a forma de beber
respirar a forma de respirar
sentir a forma de sentir
ler a forma de saber
tirar uma cópia de mim
e mandá-la viver a minha vida.


(Tiago Nené - direitos reservados)

shadows



e o que é que vais dizer
vou dizer apenas algo
e o que é que vais fazer
vou ocultar-me na linguagem
e porquê
tenho medo

Alejandra Pizarnik, cold in hands blue


foto de mariana castro

também aqui

Pontos de vista

Fotografia de Scoya @ Sintra - Quinta da Regaleira

Sorriste-me ao abrir a porta da entrada. Pousaste as chaves e vieste dar-me um beijo na testa.
Tinha as malas prontas para sair e uma expressão sisuda na cara.
Trouxeste duas chávenas de café acabadas de fazer, despiste o cachecol e recostaste-te de olhos fechados no sofá, perguntando-me como correra o dia.
Não respondi, apenas suspirei. Abriste os olhos negros e fulminaste-me com a escuridão do teu cansaço. Perguntaste-me o que se passava e o que viria a significar a minha postura.
Olhei para a porta, para as chaves tilintando na minha mão e depois para o teu regaço, onde tantas vezes arfara de prazer.
Aproximaste-te, encostaste os teus seios ao meu braço e tocaste-me os caracóis desfeitos. O meu corpo sentiu um arrepio e as pernas paralisaram ao comando do cérebro.
Só me queria ir embora... Deixar-te de uma vez por todas... Soltar-me das amarras do teu amor, que me deixava obsessivo.
Beijaste-me os lábios e eu, ainda inerte, correspondi. Encostei-te para trás e comecei a despir-te. O meu cérebro parou.
Enquanto os nossos corpos se uniam em perfeita simbiose, gemendo por um prazer que jamais alcançaria noutro local, recuperei a consciência. Tive um orgasmo...
Soltei-te bruscamente, puxei as calças para cima, peguei nas malas e no casaco amarfanhado e saí porta fora, fechando mais um capítulo da minha vida atrás de mim.

Ficaste imóvel, com duas ou três lágrimas jorrando pelo rosto.
Não compreendias, mas respeitavas. Afinal de contas, ensinaram-te que "amar é deixar aqueles que amamos livres".
E foi assim, a nossa louca e vívida história de amor.

Quem sabe como seria, se tivesses vindo atrás de mim...

Postado também aqui.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Dos direitos de autor

Não há ideias originais. A originalidade é um conceito romântico do século dezoito e dezanove.
Stanley Fish
(o mesmo que disse que qualquer descodificação é uma codificação que se pensarmos de forma inversa é a mesma coisa. qualquer codificação é uma descodificação por isso. mas talvez até não seja que uma pesquisa mais apurada indica-me que foi peirce o autor o mesmo a quem chamam pai da semiótica resta-me portanto prestar homenagem tanto a stanley fish como a charles peirce ainda que para o caso presente me interesse mais o stanley fish porque é a ele que se atribui a afirmação sobre a qual pretendo trabalhar)
, que afinal não afirmou que “every decoding is another encoding” afirmou que não há ideias originais porque todas as nossas ideias são fundadas no construto de ideias que nos antecede.
O pensamento que não é pensamento mas apenas a relação de ideias é algo que todos fazemos
(ao contrário do pensamento em que as ideias no seu estado cósmico e caótico nos surgem como diz nietzsche)
e isso não é criação , é apenas relação. Mesmo a somatização das ideias é apenas colocá-las em relação, não é pensá-las nem originá-las.
Tentar escrever uma ideia conforme elas nos surgem não só é impossível porque para isso não temos recursos multimediais
(aqueles que o nosso metafórico sistema conceptual permite)
mas também porque a própria mediação do nosso corpo põe as ideias em relação com os nossos conhecimentos prévios, ou seja, deixam de ser pensamentos e passam apenas a ser relações de conhecimento. Sobre estas podemos ter direitos de relação, mas não de autor.

Este texto é um duplicado daqui.

E o Espanto da Vida

Quando te calas
arrefecendo os ânimos
sem te saber
sequer para viver
Quando abalas
espantando as memórias
consumindo glórias
Quando enfim falas
de amor pecaminoso
das pernas abertas
esqueço-me nas descobertas
Quando me entalas
contra a parede
num desejo perverso
expludo num verso
em espera dura
fantasmas libertos
angústias dúbias
saciando-te
num berro
LOUCO
DESVAIRADO


www.manuelmarques.com

certeza

Não é por ti que choro, nem tampouco
pela lembrança de ti, mas pela insuportável
amargura a que sabem as visitas nocturnas que me fazes
nos sonhos do meu sono doentio.
Mas vou matar-te um dia,
atiro-me de um precipício,
dou um tiro nos miolos
e já está.
Matei-te.

Nas asas do amor







- C O N V I T E -

*
Lançamento de Livro de Poesia e Exposição de Pintura

*
- Nas asas do amor - diário de reflexão e poesia -
por Yasmin dos Anjos (poetisa, escritora e artista plástica)
http://www.yasmindosanjos.com/

Convidam-se todos os que "sentem" a poesia e a pintura,
a comparecerem na Herbolarium
(Rua 31 de Janeiro , Baixa do Porto, http://www.herbolarium.net/),
no feriado de 8 Dezembro, Sábado,
e integrarem um evento repleto de misticismo...
Uma envolvente artística e poética,
enobrecida por uma singela Exposição de Pintura
e um belíssimo Recital de Poesia…

*
Confirme a sua presença e receba uma surpresa no dia!
yasmin.dos.anjos@gmail.com

*

A emblemática Herbolarium
será o palco de expressão deste evento inédito...
(Projectado pelo arquitecto Joaquim Massena,
o estabelecimento é uma réplica de uma sala de exposições
da "Reis e Filhos", ali existente em 1914.
Aquando da demolição do interior da discoteca de Sto. António
que existia nesse local, ficaram a descoberto pinturas
que se encontravam em mau estado, mas que foram totalmente restauradas,
agora fazendo parte da considerada
a 2ª pérola mais bela do comércio portuense...

! ! ENTRADA LIVRE ! !

a partir das 14:00h
- encontro com a autora
- exposição de pintura *

às 18:30h
- recital de poesia
- apresentação do livro
- sessão de autógrafos

Mais informação sobre o livro em:
http://nasasasdoamor.blogspot.com/

Psicopatia

Oh sim, talvez aceite
a informatização dos meus sentimentos
talvez aceite a evidência
uma vez que estou quase morto.

Há uma jovem miúda que documenta
os vestígios da sede do meu espelho
o que senti um dia e fossilizou
com uma pinça recolhe a bela moça...

Cientistas vieram dos Estados Unidos
com aparelhos iniventados
para estudar o caso da minha psicopatia
e enfim me tornar real.



Autor: um amigo meu chamado Pedro.

O traficante (1ª parte)

Ano: 2069. Local: aqui.

Pois aqui estou. Dentro. Sim, na prisa, na choça, dentro. E porquê? Porque fui condenado por tráfico. Eu explico. Comecei a consumir apenas por curiosidade, a curiosidade deu lugar à necessidade, depois, quando as necessidades aumentaram, tive que começar a vender para satisfazer as minha próprias carências e... acabei apanhado.

Mas deixem-me fazer uma breve cronologia para que percebam todo o contexto e não comecem, desde já, a fazer julgamentos sumários, como fariam três beterrabas a um bife lilás (não perceberam a piada? ... são coisas modernas, é natural que não entendam, ainda estão umas dezenas de anos atrasados). Ah, já me esquecia – o tráfico que eu fazia era de hidratos de carbono, não de esteróides nem de expressões idiomáticas; nada disso, eu não sou desses, atenção! Bom, mas vamos lá do princípio, apenas com os acontecimentos mais relevantes para vos enquadrar.

2010: Proibição dos enchidos.
2015: Defenestração do último fumador.
2020: Electrocussão do penúltimo alcoólico (o último foi para o Museu de Cera de Madame Tussaud, em Londres). Início dos trabalhos preparatórios do novo aeroporto.
2025: Sodomização do Pai Natal por uns putos da escola C+S de Fitares. (Este acontecimento não foi muito importante para nós, humanos, mas há que ter também respeito pelas renas, já que, pelo menos uma delas - Rudolfo, o Penca Azul – é minha leitora assídua).
2030: Obrigatoriedade do jogging a partir dos 11 meses de idade ou de um metro de altura.
2035: Reprodução obrigatória por fertilização “in-vitro”.
2040: Proibição da pesca de peixes gordos e da caça de animais terrestres gordos e vice-versa.
2045: Ilegalização de todas as gorduras animais e vegetais e dos desodorizantes em forma de pénis. Fim dos trabalhos preparatórios do novo aeroporto e opção governativa pelo uso de parapente em vez de avião.
2050: Supressão do sexo selvagem ou de qualquer outro tipo, excepto se efectuado pela Internet e com animais domésticos do outro lado do ecrã.
2055: Ilegalização dos hidratos de carbono.
2060: Proibição da asneira, calão ou de qualquer tipo de praguejamento, incluindo as expressões “Paulo Portas” e “Abdulah para ti também”, para além da palavra “frigorífico”, esta apenas por um capricho palerma do legislador.
2065: Primeiras grandes manifestações e jornadas de luta de obesos, seguidas das primeiras grandes manifestações também (mas curtinhas, já que as forças não eram muitas) de apenas não esqueléticos.

Agora que estão situados, facilmente perceberão - um homem não é de ferro! – que, às tantas, uma pessoa cede à tentação. Comecei, apenas, por sonhar com uma batatinha, só uma, uminha, para acompanhar o meu “Vita-Prota Perfect”, o obrigatório comprimido da hora de almoço (e que, hélas!, o substitui...). Depois, e sabendo desses meus desejos, um amigo indicou-me um vendedor de batatas que, todos os dias às 4 da manhã, estava numa determinada esquina pouco iluminada (mas muito cheirosa) no Bairro Alto. Lá fui. Comprei só uma, para experimentar, tanto mais que eram caríssimas. Chegado a casa, cozi-a e, devagarinho, saboreei-a. Que delícia, há quanto tempo! (na verdade, a última tinha-a comido salteada, no Verão de 2054, acompanhada com dois ovos ilegalmente estrelados em manteiga e por um pêssego de sabor a cerveja com álcool).

Na manhã seguinte, a minha namorada desconfiou que qualquer coisa de estranho se passava, não só pelo meu ar de satisfeito - mesmo após uma crise de impotência com o gato dela pela Internet - como, também, por um altamente denunciador arroto matinal.

- Andas metido nos hidratos de carbono, eu sei; vi muito bem a que horas chegaste ontem e o estado em que estavas, com aquela cara de parvo sorridente com que se deitam todos os agarrados à batata!

disse-me com ar reprovador. Nem perguntei como é que ela sabia disso só para não piorar, ainda mais, a situação. Vai daí, disfarcei-me de lagarta parda e resolvi pirar-me sorrateiramente, enquanto ela me insultava sem perceber que o horroroso verme que estava a varrer para fora de casa, afinal, era eu. (E depois eu é que sou o totó do drogado!...)

- Hidratado! Não passas de um carbonatado! Por isso é que nunca terei filhos contigo! E também porque és um cocó de peru azul!

gritava ela já bem longe - que eu rastejo depressa. (Bem sei que também não perceberam o último insulto dela mas vão-se habituando que, para a frente, há mais – conforme já vos expliquei, são coisas modernas... e parvas também).

Bom, adiante. Enquanto ela continuava naquilo (“desgraçado!”, “hérnia de peixe surdo!”, ...) eu punha-me a caminho do Bairro Alto, ansioso por mais uma compra.

- E se hoje experimentasse umas massinhas italianas, será que aquele dealer também as vende?

- Massinhas, hummm...

_______________________________________
(*) – Como em 2060 foi proibida a asneira e o praguejamento, não posso dizer “peido” (Olha, afinal disse, lá vou eu ser multado, porra! – Outra, que chatice. Olha outra, ‘tou lixado! – Oh não, outra vez. Bem, vou pagar cá uma multa...)

O Livro Afectos Obsessivos



O livro Afectos Obsessivos - A poesia curiosamente sem açúcar,Edições Ecopy de Daniela Pereira




Reserva de exemplares com dedicatória minha e com muito prazer:),através do email:ielapausas@gmail.com ou através do meu hi5: http://BLUEIELA.hi5.com


Outros Postos de venda

Livraria Leitura
Rua de Ceuta 88
4050-189 Porto


Livraria Buchholz. Lda
Rua Duque de Palmela, 4
1250 - 098 Lisboa

Catálogo on line das Edições Ecopy:Colecção On Demand

http://ecopy.macalfa.pt/ (já disponível)

Encontros 2


Óleo s/tela
100x120cm
2007
Encontros desencontros,quem sabe, nesta ou numa outra vida!

Pensamentos Selvagens

Por tudo, por nada.
Pensamentos que ficam
que consomem,
que magoam,
que existem...
pensamentos da minha alma.

Letras que enchem
a calma
que me escurece os
olhos.

Palavras juntas que
dizem tudo
lamentam o nada
choram o impossível
riem o momento.

Vida que não é
triste, nem é vida
vida que não é
alegre, mas é vida

Ai, pensamento selvagem!

Liliana

Sussurros e poesia-1ºFôlego



Foto by DeviantArt - devotion_by_emilola

Shiu não digas nada, por favor! Não corrompas a lealdade deste silêncio a dois e escuta comigo o que ele nos segreda enquanto sonhamos...

Não existe mais nada numa paisagem em chamas
para além de sombras e labaredas
que abraçadas com paixão
alimentam um fogo
com sonhos húmidos.

Tens carne que cheira a queimado
cravada na tua pele
e esse odor forte
que sentes quando inspiras
vem dos meus pedaços
que no teu coração arderam.

Espera, não grites ainda ....espera que eles te queimem por completo a alma. Depois sim, grita à vontade mesmo que eu já não te oiça. Porque esse teu grito vai-me encher de prazer enquanto dispo este corpo fútil de todas as sensações humanas para deleitar os teus sentidos com as minhas miragens. Podes vir comigo se quiseres, porque nesta cama vestida com lençóis de carne há sempre lugar para mais um...
Mas não venhas já, dá-me tempo para apagar todas as luzes do quarto porque quero a tua imagem à luz de velas forrando as paredes. Só assim o quarto ficará acolhedor para te perderes em devaneios mais quentes.
E na penumbra apenas te verei a ti porque só para ti farei poesia no escuro... para o resto do mundo estarei cega e muda...

Dois corpos nus
ainda vestidos
contorcem-se de costas voltadas
num êxtase solitário.
Não existe mais nada neste quarto
que deixei em chamas...
Nada mais escuto agora
que a noite se deitou em mim...

Só estes sussurros que escapam da minha boca
tentados pela poesia que declamas com o teu corpo...

Daniela Pereira-Afectos Obsessivos-A poesia curiosamente sem açúcar,Edições Ecopy

POR VERTENTES DIVERSAS

(Opúsculo do Natal)

SÓ, quase que inalterável, no movimento perpétuo das coisas, deixando-me envolver pelas correntes cristalinas do Natal, numa postura tão vazia que ainda circula, e que continua a circular anonimamente, como se o remédio da tarde viesse solucionar a morte da manhã. Não sei porque me pediste para te falar do Natal! No tempo da mãe pouco valor lhe atribuías, agora, nem me parece fazer-me mover ao tal palco enfeitado. Enfeites não faltam todos os dias… com outros nomes, num outro Natal, esquecendo-se o que devia estar presente.
Incalculável a distância que nos separa, esta da simplicidade construída pelas vertentes diversas dos vocábulos antigos, enquanto escuto a música mágica, essa que tentas colocar, junto da lareira e pelas montras ao sabor da tradição, ainda que não compreendas nada do que na realidade se esteja a passar.
Ontem falei com o pai e até parece que estávamos a querer filosofar… o pai sempre me disse coisas interessantes, as verdades nuas e cruas; muitos não gostam dele por ser assim, distante e frio, preferiam aquilo que a maioria absorve. Paciência! Descubro nele verdades quase inalteráveis. Ao fim de vários anos chego aqui e falo-te assim, como se o fim fosse ali, talvez seja aqui, o espírito do verdadeiro Natal, esse que ainda está por compreender. Como te posso compreender se a mudança é uma constante?
Continuamos como se nada existisse, nem o orgulho, nem o rancor… tudo é tão normal, como o ritmo das marés e tomamo-nos nas águas do Natal, na febre de todos os anos e sorrimos com a mesma hipocrisia de sempre. Será que é isto que a sociedade pretende? Justificação consumada pelo sorriso! Os seus valores continuam a ser falsas declarações de chocolate e outras frituras, com um presépio e uma árvore de Natal muito à maneira. Grita-se a todos quantos se interpelam, por um Feliz Natal, com todas as respectivas encomendinhas, não esquecendo a missa do galo e a cantilena da meia-noite. São as Boas Festas! Já nasceu o menino, sim, esse menino que nasce sempre todos os anos, o repetível menino que nunca envelhece… azar o meu que estou a envelhecer! Eu? Claro, e tu também, não serve de nada pensares o contrário e o Natal encobre esse rosto santificado da fé milenar com os seus mitos, as ditas fantasias que iluminam as consciências adormecidas.
O olhar fez-me entender a postura conservadora de outro modo, entre as partículas atómicas que permeiam os rostos inquestionáveis; este suplício continua talhado na romaria da tarde… enquanto preparas mais um pretexto para te salvar da situação caricata, essa que tentas defender por modos de conveniência! O teu jogo é tão interessante que deixou de fazer sentido para mim… o que vem a seguir é sempre uma aula diferente, onde o tema do Natal se insere quase como por imposição; apenas te agradeço por teres chegado aqui, porque falta ainda a tua justificação, pelo menos essa que possa fundamentar o tema, ainda que por vertentes diversas. Melhor é ir preparar o novo cântico de Natal, para as boas vindas do novo ano, porque este está bastante cansado, entretanto fica com a saudação, essa que melhor te fique… que se repita para todos, um Feliz Natal.

Vila Franca de Xira, 28 de Novembro de 2007 – 06:27h
Jorge Ferro Rosa, in Caderno da Alma

Pedras Negras


O SOTAO, grupo de teatro do ICBAS, está de volta com mais uma peça de Teatro.
Adaptada do texto "O Crime de Aldeia Velha" de Bernardo Santareno, Pedras Negras, é baseada numa história verídica que aconteceu em Portugal à pouco mais de 60 anos, mas que bem se poderia ter passado no século XVI em plena Inquisição.

Não percas esta 6ª-feira, dia 30 de Novembro, às 21h e no Sábado, dia 1 de Dezembro às 17h, na Fábrica, Rua da Alegria, nº341.
E ainda na 2ª-feria dia 3 de Dezembro, às 21h, no Auditório Municipal de Paranhos, inserido no FETA Porto - Festival de Teatro Académico do Porto.

Os bilhetes são como sempre, preço mínimo de 1 cêntimo, para que o teatro seja acessível a todos e não sobrem desculpas para faltar!

Para reservas contacta: 91 870 44 55
91 244 01 83

(SUB) MISSÃO

Bato na tecla
Ao ritmo de uma imagem por carácter
No passo ora trôpego, ora bruto
Em busca do trauma original
Curvo-me pescando e repuxando
A memória
Atemorizado pela sucessão
De recordações (minhas?)
Que se atiram sobre o abismo
Involuntariamente

Mário Lisboa Duarte


Pintura Rupestre por Frederico Fonseca

COPYRIGHT MARGEM D'ARTE

Where are you looking @?

Fotografia de Scoya @ Oceanário - Lisboa

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Perfect Day (it was)


era sempre nestes dias que ela ficava assim. e ia buscar o cd deles. das poucas recordações que ainda tinha dos dois. deu-o a ela numa das poucas (sim, via agora que foram poucas, cada vez menos) viagens que fizeram juntos. era noite. escurecia também já o coração dele. só ela não percebia. ela que agora colocava cuidadosamente o cd no computador. a sua única companhia. que a noite fria estava lá fora e não a ouvia chorar em silêncio.
tinha medo de recordar mais uma vez e de apagar mais um bocadinho. de se apagar.
- cor-de-rosa.
disse-lhe ele uma vez. assim era o amor deles. ela tinha dito vermelho. estavam num café antigo da cidade e ela tinha dito vermelho porque se apaixonou em 10 minutos (como ela se queria apaixonar em precisamente 10 minutos só mais uma vez). mas sim, era cor-de-rosa. e aquele um dia perfeito.
como ela queria voltar àquele início de outono, àquele fim de noite, de passeio, de sonho. como ela queria não ouvir o cd deles que continua a tocar no cinzento computador que ela tem agora à sua frente. apenas. o cinzento.



Just a perfect day,
Drink sangria in the park,
And then later, when it gets dark,
We go home.
Just a perfect day,
Feed animals in the zoo
Then later, a movie, too,
And then home.

[Lou Reed]


[Foto: Lilya Corneli]

À Beira do Mar

Pés perfeitos
água salgada e amor
ondas flamejantes
adormeço devagar
Apenas a água fria
tapando os pés
e a areia
E depois
outros pés
juntam-se em delírio
e as ondas rodeiam
As ancas rodeiam
a areia molhada
perto dos pés
salgados molhados
E sobra sempre tempo
para te abraçar
encostar a boca
À beira do mar
mesmo de noite
sem adormecer
devagar e sem saber
Apenas surpresas
conchas difusas
dissolvem-se na morta
estrela do mar seca
caso isolado
no paraíso
junto aos pés
delicados molhados
puro desejo
e lá em cima
o céu encoberto
vestido de branco
promete chuva doce
limpar os pés quietos
cobertos de areia
e agora as ancas
as nádegas perfeitas
juntam-se na areia
e sabe bem a água fria
abraçar-te
e ouvir as ondas
flamejantes
à espera de Vida
para se alimentarem

Ah o mar
entusiasmo sem inquietação
na Boca do Inferno
ou apenas em Stoupa
a ver o Sol engolido
memórias distantes
tortas figuras
de um passado
mumificado
porém engraçado

Lembrava-me agora
da última vez
a última mesmo
em que estive apaixonado
via o Sol ser engolido pelo mar

www.manuelmarques.com

Parábolas

Muitas são as parábolas
que quem não vê não ignora
tantas são as formas
que o mundo tem.

Miguel Alves

Palavras também aqui
www.mentequebrilhas.blogspot.com

Algumas Palavras

Fio Assimétrico


Worth1000


Grávida
Da modernidade
Pariu um blog
Um fotolog
Fruto do virtual
Relacionamento
Rebento digital
Da combinação de teclas
Nas telas
Nos pedaços das palavras
Que nada revelam
Só uma louca vontade
De construir
Algo diverso
Do universo
Real...

(By Casti)

lágrimas inocentes


Lágrimas inocentes

Lágrimas correndo pela face macia,

Pela alma límpida, pura, deste ser especial...

Não lhe passa pela mente, o quando a vida é fria,

E quais os "perigos" que lhe podem fazer mal....

Chora por qualquer motivo banal, por uma palmada.

Por uma repreensão, de algo incorrecto que tenha feito.

Não sabe que quando crescer, pode vir a chorar desesperada,

Por dores bem mais profundas, quem sabe até, pelo seu coração "desfeito"

Inocentes, as lágrimas molham a pele com suavidade,

De uma forma invulgarmente, encantadora.

Expressando, a tristeza por este ser, sentida...

Que pode vir da dor física, ou de sentir saudade,

Expressão desta criança sonhadora,

Que a acompanhará para o resto da Vida...



Cátia Rodrigues


acrílico sobre tela

24x30

2007


Trompe l’ibido


Artur Amieiro, Trompe l’ibido, Óleo s/ tela, 60x40 cm., 2003.
[Sobre uma fotografia de Thierry Dosogne]

- Uma folha, apenas uma folha!

A Morte da Água

Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore geneológica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida.
Ruy Belo

NO REGRESSO DA INCERTEZA IMPRÓPRIA

No hemisfério do sorriso, fico,
No rosto do sonho, avanço…
Tomo-me nos líquenes verdes!
Nas palavras cintilantes da tarde
No segredo da gaivota, livre
Pelas brumas da razão, sem nome
Pela ingenuidade da confidencia
No regresso da incerteza imprópria.

Suspiro paladares antigos…
Beijos que o festival incendiou!
O silêncio do desalento ainda ficou
O enlevo fresco das palavras emoldurou
O olho do furacão da santidade repousou!
O compasso adormecido… acolheu-me!
Esta seiva da noite coberta, ficou
No regresso da incerteza imprópria.

Nos meus lábios cresce a espuma!
O toque do labirinto da provocação…
O espaço traiçoeiro da inclinação,
A sementeira do sorriso onde te somo!
Em marés de desejo azul… um gomo,
O mar de epílogos despido, o sentido
A incerteza aberta da janela, larga
O silêncio de mim que adormece,
Na inutilidade do tempo curvo, fico
No regresso da incerteza imprópria.

Vila Franca de Xira, 27 de Novembro de 2007 – 15:11h
Jorge Ferro Rosa, in Caderno da Alma

Inquietude


Inquietude
Sensação erótica.

Não no sentido sexual, no sentido do amor, do desejo, do corpo nas suas manifestações.

Inquietude no corpo da escrita, numa união em que o texto é uma espécie de prolongamento do corpo, que questiona a ideia de identidade e de sujeito.

Hoje,

Estou inquieta....numa migração constante a mim mesma e num aconchegante regresso ao lar...a mim....de novo...a mim.

São Correntes d'escritas.
Do Caderno da Loucura, made in Pensamento




Elogio fúnebre a um Nada




Não és nada
e nunca foste nada
para os outros
que são tudo para ti.
Nem mesmo aquele ínfimo pedaço
que de ti deste
julgando ser o teu maior pedaço
chegou para preencher
algum espaço no céu com o teu nome.

És um vazio na terra
que nada tem por dentro
para além de sentimentos ocos
e emoções emprestadas .
Não tens vida própria
e vives à custa dos outros
esperando alimentar os teus sonhos
com as migalhas que os outros te dão
em troca do pouco que lhes dás.

Depois é ver-te a escrever como louca
a pensar que alguém escuta as tuas palavras
e só porque as carregas com toda as tuas forças no papel
julgas estupidamente
que podes assim deixar alguma marca.
Mas não...
Digo-te que não deixas nem um traço
porque és apenas pó
e o vento sopra-te rapidamente da folha sem remorso algum.

Não amas
e nem sequer podes mais amar
com esse coração assim desfeito
por tantos medos aguçados.
É que tu sabes bem
que assustas qualquer sentimento
que passeie alegremente pelo teu peito
com todo esse medo que tens colado a ti
e nem sequer te importas.

Já não enfrentas o mundo...
Se é que alguma vez o enfrentaste de frente
porque sempre te vi fugir
como um cachorro assustado.
Já não sabes como se luta
porque te esqueceste como isso se faz
de tanto estares
enfiada nesse teu buraco seguro
cercada de fantasias.

Esperneias...
Gritas e choras
e enquanto te debates sozinha
por entre dúvidas e certezas
nos teus pensamentos mal amanhados
vais suplicando
como um peixe fora de água

que te deixem ao menos respirar.

Então, hoje sei que olhas sufocada
para aquela caneta
que tantas vezes te fez sorrir
e até ela baixa os olhos
perante toda essa tristeza
que adivinha estar estampada nesse teu rosto.
E tal como tantos outros
ela também já se sente enfadada
das tuas lamurias sem nexo
que esculpes com as tuas mãos
nas curvas da poesia morta.
Agora ela só quer
procurar outros poetas
que saibam celebrar com as palavras
essa vida que tu
já não tens nos teus dedos.

Daniela Pereira in Afectos Obsessivos-A poesia curiosamente sem açúcar,Edições Ecopy
Já disponível para reserva de exemplares com dedicatória da autora,através do email:ielapausas@gmail.com :)

Foto by Nuno Reis - http://www.noir-sur-blanc.blogspot.com/

O Guardador de Retretes - o não lançamento


Tratamos aqui das «elocubrações filosóficas e as inaventuras de ASOBRAB ORDEP, autodidacta, viralatas intelectual e guardador-de-retretes, como subsídio para a fundação de uma nova e risocrónica scientia: A Retretologia».
Como diz o autor, Pedro Barbosa, este livro é uma ficção de um ensaio, que tem como ponto de partida os escritos encontrados nas casas de banho públicas.

As Edições Afrontamento têm o prazer de convidar para o não-lançamento da 4ª edição do livro O Guardador de Retretes, de Pedro Barbosa (com posfácio de Manuel Frias Martins). A sessão terá lugar no dia 30 de Novembro, pelas 21,30 horas, em sítio nenhum. Ninguém fará a apresentação da obra: o livro apresentar-se-á a si mesmo nas livrarias.

Nulidade

Um rapaz estava sempre a dizer que um mais um eram dois, que um mais um eram dois. Em determinada ocasião, alguém se lembrou de lhe perguntar por que razão andava sempre com aquilo na boca. E ele respondeu: «Se me esquecesse de que um mais um são dois, arriscar-me-ia a cair em humilhação perante a mulher que me chamou de nulidade.»

Também aqui
.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Amor (Reverso)

Cantam o amor, por tudo e por nada
sem nada, amam, desumanizam a vontade
cruel de seguir a tradição do amor
porque é giro, de dizer, divertido de fazer
mas apenas são o reverso do amor e dor.
Queria sentir-te um pouco mais
perdido num sentido destemido de sensações
de nuvens macias sem fim de ternura
reversos ausentes de sementes inanimadas
apenas revejo o contexto, de pernas para o ar
o sentido embutido num feixe, canções de embalar
Jesus reencarnado em chagas esfuziantes de luz e cor.
Nunca o ser humano seguiu consciente
numa pista de amor descolorido
na paixão tudo é relativo menos o tesão
é dizer que te amo, mesmo a morrer afogado
e sorrir, sorrir sem medo de mais nada
no nada, no vazio de uma alma vazia
de sofismas e fantasias
aniquiladas porcarias.
É o reverso do amor e da dor
sem cor, odor, torpor.
Cantam o amor por tudo e por nada
cegam a razão apenas pela excitação
secreta confusão de atrozes incapazes
chorando, esperneando
apenas uns infelizes canibais
da sua falta de amor-próprio
e depois vale o perverso
o concreto motivo em ambíguo dialecto
numa dose de orgulho aniquilado
no sentido e no ensejo de vibrar
embalados em fugaz tentação
de orgasmos pela satisfação
de algum dinheiro e nenhum tesão!

Onde anda o amor?

www.manuelmarques.com

Encontros 1


"Encontros 1"
óleo s/tela
2007
Na longa caminhada,...a nossa vida,por vezes colorida ou não, neste ou outro espaço quem sabe!

#009

técnica mista sobre madeira
[61x122 cm]
Casa da Juventude - Câmara Municipal de Sintra

Vamos falar de amor...calados?




Fotografia de Nuno Reis in http://www.noir-sur-blanc.blogspot.com/

O tempo passa e o coração permanece parado
Estático na sua timidez de amar…
Ávido por uma batida mais intensa
Por um fôlego apressado..
Por um toque na pele sentido na boca.
O amor não pensa…
O amor entrega e rouba
Tudo o que é racional…
Prende-te os sorrisos
Com teias de mel…
Amarra-te os sentidos
Com abraços sem folga..
Bebe-te o olhar
Com dois copos de vinho branco bem servidos.
Devora-te o peito
E tu lambes os restos que amores antigos deixaram
Ansioso pelo gosto de uma nova sobremesa.
Como mostramos o que sentimos ao amar?
Como se pinta o tecto com beijos multicolores
Usando o vermelho como fundo na tela?
Como se respira devagar
Quando os pulmões
Fazem redemoinhos com ar na boca?
O amor não pensa…
Fecha os olhos à noite
E a tua imagem vem-lhe à cabeça
Como um sonho bom
Que cortas em pedaços
Para saborear com sumo de limão.
Amas demais…
Esqueces tudo à tua volta
E só vês um corpo
Esculpido nas sombras…
Todos os rostos
São monótonos
Se não são aquele rosto
Que idealizaste em ti.
Todos os beijos
São iguais…
Sabem a pouco
Se os teus lábios
Não estão despidos
De beijos passados.
Então amas com cuidado…
És frágil nas entregas
Porque o teu coração dos portões de ferro
Fez portas de cristal.
Amas com o coração
Mas amar... fode-te sempre a cabeça


Daniela Pereira in Afectos Obsessivos-A poesia curiosamente sem açúcar,Edições ECopy

domingo, 25 de novembro de 2007

Algumas palavras


Na voz tremida
Da pressa
Da caça
Da presa
Combinado
Num torpedo
Sem agarro
Sem amasso
Palavras urgentes
Buscando
Alguma emoção...

(Casti )

teiadepalavras blogspot

Foto: Andrej

Maestro Edipiano







Eu te amo (Com Chico Buarque e Telma Costa)

"Todas as vezes que Tom abriu o piano, o mundo melhorou. Mesmo que por poucos minutos, tornou-se um mundo mais harmônico, melódico e poético. Todas as desgraças individuais ou coletivas pareciam menores porque, naquele momento, havia um homem que se dedicava a produzir beleza. O que resultasse do seu gesto de abrir o piano - uma nota, um acorde, uma canção - vinha tão carregado de excelência, sensibilidade e sabedoria que, expostos à sua criação, todos nós, seus ouvintes, também melhorávamos como seres humanos."
Ruy Castro - A Onda que Se Ergueu no Mar

Factos

Falei para dentro e não obtive resposta.
Tentei falar para fora, mas as palavras foram mudas. Foi então que decidi fazer uso do gesto, mas o corpo não moveu.
Esbracejei, contorci, agitei... E nenhuma célula deu o comando necessário ao cérebro. Fiquei então assim, imóvel. E o tempo passou por mim...
Quando reparei, tinha morrido. Não neste mundo, mas em mim.

Fotografia de Scoya @ Foz - Porto

Postado também aqui.

SACRIFÍCIO SEM NOME

Na página perdida da intuição mutilei a alma, com um pouco de coragem fiz um corte no dedo, só para experimentar, olhei ao sangue a correr… parecia erosão! Mutilei-me, senti-me, entendi o meu sangue vermelho do coração, do meu ser o meu espelho e numa velocidade sem velocidade fiquei. Estou! Incompreendido esquartejado no eixo do sentir, torno-me na alcova da liturgia, na cidade das putas sânscritas, enquanto me envias uma mensagem que não respondo.
A imagem do meu dedo, órgica, continua a deixar fluir o meu sangue, ao ritmo dos relógios e das éticas privadas. O meu princípio continua a sangrar, nas trevas de ninguém, tentando coagular os genes do erotismo… esta massa vermelha que dissolve o prazer!
Coabitado pelo verbo do destino, avanço no regimento do instinto, ainda que tomado pela relação compromissofóbica, por tudo isso que sempre senti… isso, que só hoje coloquei a limpo neste sangue vermelho, corrompido pelo título do terror de deixar de ser o que passava a não ser, por essa postura. Mutilação parcial…
As metáforas do meu sangue incharam, formaram-se numa multiplicação de genes, quase indefinida, aquilo que sempre te falei de mim. A minha carne é sempre a mesma, os horizontes ressuscitam o cérebro sonolento, de tanto prazer que a dor concebeu! A dor é a verdade da ilusão sanguínea, o mandamento do vinho que alimenta o meu corpo, o retorno que chama pelo fluído divino.
No ritual do sangue, solto mais uma gargalhada, entre a sombra dos mortos e os risos incompetentes, na epistemologia de um credo ateu… as chagas paradoxais da existência, no consolo do abismo, impessoal.
Aquelas máscaras não servem para nada, dividem os ponteiros do relógio, acolhem o ritual na insuficiência do sangue. Creio no sangue eterno, no sonho sem membros, na tradução do composto interior que segrega dos cadáveres o silêncio absoluto, um pouco mais negro do que o sangue seco… os caminhos da interrogação. Ofereço-te o sangue da mutilação, com o sabor da exegese da metáfora que encarna depois da procriação do nada. Este é o meu sentido único, na luta dos signos, pelo olhar vermelho, côncavo, atiçando o fluído da razão e as suas glórias enfrascadas. Dissolvo-me nos sabores do meu corpo, no vermelho inacabado e fugidio. Deste sangue irrompe a incerteza que se sacrifica por destinos inúteis. Todas essas justificações são batalhas do sangue imperfeito, cujas respostas decepcionam o desconhecido e intimidam os incautos!
Na alucinação da romaria do sangue anárquico, embalo a pequena distância, num véu de desencontro, onde te ofereço o compasso, tomo-me no remanso do meu sangue apocalíptico que desafina o místico do meu degredo, informe. Suspiro na universal dedicação, com a overdose das sensações da passividade do pecado (terminologia ultrapassada), nas notas que gritam o meu nome, o meu sangue que te devolvo com a morte do amor interrompido. Ficou assim no meu dedo, o verbo mutilado, na memória do espaço exíguo por um sacrifício sem nome, o sangue de todos os sangues.

Vila Franca de Xira, 25 de Novembro de 2007 – 12:04h
Jorge Ferro Rosa
Escrito no café “Miratejo”. In Caderno da Alma

Pianista

Um pianista pegou num martelo e partiu dez teclas do seu piano com uma martelada. Depois, partiu dois dedos de uma das suas mãos com uma segunda martelada. Andava ansioso.

Também aqui.

O erotismo de um calão

Carlos não começou a trabalhar antes dos trinta. A mãe, farta de o sustentar, dizia-lhe constantemente: «Vê se começas a vergar a mola porque eu ando a perder a paciência para esta situação.» O rapaz, no entanto, fazia-se de mouco. E continuava sem pegar no trabalho. O pior é que não fazia nada. Nem em livros de escola pegava.

Durante anos, a única verdadeira ocupação de Carlos foi ver pornografia na televisão. Aquelas mulheres de cabelo oxigenado, de fio dental e de seios modificados, faziam-no pensar numa realidade alternativa. Deitado na cama ou sentado no sofá, Carlos imaginava que vivia em Las Vegas com a mulher dos seus sonhos. À mesa, a jantar com os pais, o rapaz sonhava que estava num restaurante caro com uma prostituta de gabarito. As pernas de um roçar-se-iam nas do outro e, numa questão de minutos, duas línguas colar-se-iam uma à outra.

O sonho dominava a vida de Carlos. Se lhe falassem de questões práticas, ele esconder-se-ia. Se lhe falassem da actriz pornográfica X, ele, de sorriso nos lábios, confessaria as suas paixões. Infelizmente, o sonho que comanda a vida é também o sonho que faz de nós pessoas infelizes. Com o passar dos tempos, Carlos foi sentindo falta de um carinho especial. As cassetes de vídeo já não lhe chegavam e, por vezes, olhar para o ecrã no qual as orgias se passavam, tornava-se penoso.

As pressões da mãe não desapareciam. «Quando é que começas a dar no duro?» Diga-se que a senhora tinha uma certa razão, uma vez que o seu filho já não era uma pequena criança que devesse ser guardada dentro de uma redoma de vidro. Carlos tinha trinta anos e, se se descontassem os tempos de meninice passados a brincar ao berlinde ou a dar pontapés na bola, já estava pelo menos sete anos atrasado para o comboio do trabalho.

Um dia, Carlos pôs-se a olhar para os classificados dos jornais, tentando encontrar algo que se pudesse encaixar na sua forma de estar no mundo. Logo na primeira página, saltou-lhe à vista um anúncio que de fazer crescer água no bico: Procura-se homem entre os dezoito e os trinta e três anos para protagonizar filme muito erótico.

«Caramba», disse. «Vou mandar o currículo.» E mandou. Passados dois meses, recebeu uma carta de resposta. Ansioso, nem quis abrir o envelope de forma civilizada. Rasgou-o e começou a ler. «Aceite.»

Aos trinta anos, Carlos, rapaz de grande sorte, começaria a trabalhar como actor pornográfico. Mais: conheceria todas as mulheres que o levavam à loucura. Porém, quando chegou ao estúdio que a produtora lhe indicara na carta, Carlos começou a sentir-se embaraçado. Sentiu as bochechas a aumentarem de temperatura quando se lembrou de que estariam muitas pessoas a olhar para o seu pénis. De qualquer forma, aquele tipo de ideias aparecia algo tardiamente, uma vez que as suas decisões já haviam sido feitas. A entrada do seu pénis no ânus da actriz era algo que, embora ainda não tivesse acontecido, se tornava obrigatória.

Frente-a-frente com uma mulher espampanante, que o faria vibrar se estivesse a visionar um filme, Carlos ganhou uma visão analítica. Por debaixo do cabelo amarelo brilhante da mulher, escondiam-se muitos cabelos brancos. As estrias acumulavam-se à volta da cintura da senhora. Não poderia haver dúvida nenhuma de que aquela mulher conseguiria excitá-lo mais ao longe do que ao perto. Mas o tempo para pensamentos esgotava-se. Impunham-se acções, gestos, movimentos. A câmara estava a filmar.

A mulher, ajoelhando-se no chão, começou a abrir a braguilha de Carlos, que desatou a transpirar. Já com o seu instrumento na mão, disse a mulher que, em anos e anos de profissão, nunca havia visto coisa tão grande. Carlos, embora rindo, começou a sentir nojo da situação.

Quando abriu a boca para engolir a carne do actor em estreia, a rapariga não conseguiu esconder as cáries. Este, desfalecendo, ainda pensou que poderia fugir. Mas não.

Também aqui.

Dor Bastarda




O ecrã é espelhado. Contemplo e ouço, absorto, as chagas cantadas pelas lágrimas de Brel, e num momento de instintiva esquizofrenia, evade-se a mão emancipada para a cara seca. No reflexo alucinante, desfila em mim a romaria penitente de um amor que não é meu.

Se ignorasse o sentido do meu compasso cardíaco, preencheria a inconsciência da minha dor com a dor alheia, acolhendo-a como coisa minha, e só minha. Se não amasse, se não sofresse, se não existissem adeus para chorar, eu seria toda a dor bastarda do Mundo. Doer-me-ia mais, na angústia dos outros, a incapacidade para os igualar na verdade, superando-os na mentira. Pagar-me-iam como mercenário da angústia, compondo elegias que se despenhariam em abismos onde nunca estive, e vivendo nas noites brancas dos espíritos soltos.

Nessas noites, é proibido morrer, porque já ninguém vive. Nelas, dissecaria, com a minúcia da distância, a agonia, em impudente heresia, e beberia a lágrima guardada de Calígula para ser Imperador na dor. Roubaria a harpa em labaredas de Nero, e tocaria os acordes apocalípticos que ressoarão nas cidades eternas sitiadas pela morte. Sozinho no Mundo, com a ousadia de estar vivo na noite branca, adiar-me-ia sem fim, caindo partes de alma em cada beijo dado no vento. Desafiaria Deus, e o Filho que a Verdade desconhecia. “Basta, porque nunca a dor doeu assim”, vociferavam, juntos e ofegantes, enquanto jogavam bilhar com os planetas e se escondiam em universos que não existem.

De Verdade nada sabiam, porque Mentirosos eram todos, Todos Eles. Escrevi, com a luz crepuscular das estrelas, uma carta de amor cósmica, e guardei-a numa cratera da lua onde fizemos, tantas vezes, amor: “Compreende: carinho são restos decompostos do Amor. Eu não desisti de ti, mas desisti de mim.”

Despedi-me, e gritei nas veias do Universo, um Amo-te finalmente real. Ele veio falar comigo, mas já era tarde. Disse adeus a Deus”. E já morria, quando cometas em trânsito louco espalharam pelo universo a voz que roubaste a Piaf.

"Ne me quittes pas..."

* Al Berto, em estilo caravaggiano, num trabalho de Paulo Nozolino

Estranho Estrangeiro (por Terras de Vera Cruz)

Hoje

Esse gesto que se abala
na súbita voragem de um passo verbal,

da ideia retida,
contida numa palma de mão só,

Chove.

Inúmeras as palavras
que liberta,

E soltas,soltam-no e

Pára.

Saciada a companhia do diálogo.


Carla Milhazes Gomes
(Todos os direitos reservados)

CLÃ - POIS É



Adoro isto!

sábado, 24 de novembro de 2007

[um texto com cerca de dois anos, publicado por essa altura no blogue d'apontamentos, e que agora apenas renomeei. Desculpem-me o espaço que ocupa.]

COM TODAS AS LETRAS

a

A estrada curvava para a direita, mas o carro seguiu sempre em frente, sem hesitar, feito trajectória: desceu a encosta num longo rasto de pó e imobilizou-se num estrondo surdo contra a árvore isolada.

O homem sentado ao volante, o sangue a escorrer-lhe num fio pelo lado direito do rosto, ficou quieto, de olhos bem abertos e minutos decorreram até que passou lentamente um dedo pela testa, o ergueu em frente ao rosto e procedeu a uma prolongada inspecção.

Depois saiu do carro e ficou de pé ao seu lado, olhou a árvore, o tronco largo, os ramos torcidos, a copa frondosa, e descansou o olhar no horizonte, na direcção do sol que descia. Respirou fundo, inspirando e expirando ruidosamente, deu alguns passos e sentou-se encostado à árvore, de costas para o carro.

Pouco tempo depois fechava os olhos e adormecia.

b

Acordou e estava escuro, demasiado escuro. Por momentos pensou que cegara, mas logo percebeu que tinha os olhos fechados, e tentou abri-los, uma e outra vez, sem resultado. Concentrou então todo o seu desespero nas pálpebras recalcitrantes e acordou para um sereno fim de tarde. E ali ficou, encostado à árvore, respirando pausadamente, os olhos bem abertos.

c

Gosto da sensação que experimento
quando as coisas parecem encaixar-se.
Não como as peças de um puzzle, nada disso,
mas de uma forma bem diferente, como o mar na areia,
uma brisa no verão, os meus olhos nos teus.

Não sei se o mundo faz sentido nos raros instantes
em que sinto que as coisas se encaixam,
mas sei que paro tudo o que estou a fazer,
e fico para ali, alheio, tranquilo, absorto,
todo eu surpresa e deslumbramento.
E muito tempo passa até que desperto.

d

“Boa tarde, algum problema?”
“ Nenhum.”
“Desculpe, é que o vi o estado do carro… É seu, não é?”
“Sim”
“Não precisa de ajuda?”
“Acho que não.”
“Chamou alguém?”
“Não.”
“Mas está cheio de sangue na cara, deve ter dado uma valente pancada. Não quer ir ao posto médico? É perto e eu vou nessa direcção”
O homem sentado no chão não respondeu e voltou a olhar para a linha do horizonte.
“Vem?”
“Sim.”
“Não tem nada no carro que queira trazer?”
O homem voltou a não responder, mas olhou para o carro com vagar, depois aproximou-se, abriu a porta do condutor e retirou do banco do lado uma bolsa de couro que colocou a tiracolo.
“Tem a certeza que está bem?
Sente-se em condições de se deslocar?”
“Está tudo bem”, respondeu ele com um sorriso, e afastaram-se os dois.

e

Na esplanada do café ao lado do posto médico, o homem sentado junto à porta detém o seu olhar na pensão um pouco mais à frente, do seu lado esquerdo. Depois abre a bolsa e espreita o seu interior. Retira uma carteira castanha, observa-a dos dois lados, parece que vai abri-la, mas pousa-a na mesa. Olha de novo para dentro da bolsa e agarra umas quantas folhas A4 dobradas sobre si próprias. Endireita-as. Folheia-as. Parece ler. Volta a guardá-las. Coloca a bolsa na cadeira a seu lado. Olha a carteira sobre a mesa. O dia está quase a acabar. De dentro da carteira tira um bilhete de identidade, olha a fotografia e assinatura, lê o seu nome, filiação, naturalidade, residência, data de nascimento e volta a colocá-lo no seu interior. Também tem cartão de crédito e de débito. E cheques. Olha de novo para o outro lado da rua. Passado algum tempo levanta-se e atravessa a rua.

f

Queria escrever com nuvens brancas num céu azul,
era isso que eu realmente queria,
mas escrevo palavras iguais a todas as outras,
que só eu afinal sei
nuvens brancas num céu azul.

g

“Fica só uma noite?”
“Não sei.”
“Se quiser jantar a cozinha está aberta até às dez horas.”
“Não tenho fome.”
“Uma boa estadia”
“Obrigado.”

h

Subiu até ao quarto, despiu-se, e tomou um longo duche. Depois vestiu-se de novo e deitou-se em cima da cama, de barriga para cima, sem se mexer, a olhar o tecto por cima dele. Não fossem os olhos abertos e quem assim o visse pensaria que estava a dormir.

i

Acordou, levantou-se e foi à janela: Rua deserta; iluminação fraca; silêncio. Olhou as horas: quatro e quinze da manhã. Deitou-se de novo e adormeceu.

j

Aqui e agora,
Neste preciso momento,
Eu sou não sei quem.

l

"A cozinha já está aberta?”
"Começamos a servir refeições ao meio-dia, mas se quiser algo simples como uma omeleta eu posso mandar fazer.”
“Não é preciso, eu espero.”
“Vai então ficar mais uma noite?”
“Sim. Porque não?”
“Tem a certeza que não quer comer nada antes? Já passou a hora do pequeno-almoço mas…”
“Está tudo bem, não se preocupe.”
“Até já.”
“Até já.”

m

As palavras caminham para longe em silêncio.

n

A esplanada. A carteira castanha. O cartão Multibanco.

o

Percorre as ruas sem outro rumo que encontrar uma caixa Multibanco. Quando já não sabe de onde veio, quando quase esquece o que procurava, eis que encontra uma. Tira o cartão, insere-o, marca o código e consulta o saldo. Levanta quarenta euros, olha-os por um momento e guarda-os na carteira. Olha em volta e percebe que está muito perto de um terminal de camionetas. Dirige-se para lá. Uma camioneta está quase a sair. Pergunta ao motorista se ainda dá tempo, e como este lhe responda afirmativamente, compra um bilhete para o fim da linha e embarca.

p

Às vezes digo,meio a brincar, meio a sério,
que gostava de viver num convento,
longe do mundo.

Mas ninguém acredita em mim, riem-se,
e nem por um momento julgam
que tal podia acontecer.

Na verdade, eu sei, não se foge do mundo,
tal desejo em mim é ridículo e nunca
se tornará realidade.

q

“Desculpe, pode puxar a cortina?”
“…”
“É que o sol está a incomodar-me, importa-se?“
"…”
O outro continua a olhá-lo, e a sorrir.
“Não fala português?”
“Falo sim, desculpe!”
“Então?”
“O sol incomoda-o, quer que puxe a cortina, é isso?”
“Sim, foi isso que eu disse. E era mesmo isso que queria dizer.”
“Diz sempre o que quer dizer?”
Foi a vez do outro se calar, e sorrir.Falaram durante muito tempo, um falando muito e outro ouvindo e falando de quando em vez. Entendiam-se às mil maravilhas.
“Tens a boca cheia de palavras”, disse o homem, e o jovem deitou-lhe a língua de fora.
Riram os dois.

r

Em mim existem sempre dois lados
que se afirmam e se negam.
E com tal intensidade o fazem,
que muitas vezes acredito ser
apenas o vazio que os separa.

s

Tenho o dom de recordar
e o dom de esquecer e
um e outro são afinal
uma e a mesma coisa
a que eu chamo ser.

t

"Pare o autocarro, pare!”, grita ao mesmo tempo que se levante e avança em direcção ao condutor.
"Pare o autocarro, pare!”
O motorista imobiliza o autocarro e vira-se para o jovem à espera de uma explicação que não tarda.
“Falta uma pessoa”, diz ele, e repete, como se o outro não tivesse ouvido.
“Está referir-se ao homem que ia ao seu lado, não é?”, diz o condutor a sorrir. E como o outro ficasse agora em silêncio, continua:”Está tudo bem, ele avisou-me ainda há pouco que não continuava. Vinham buscá-lo ali.”
“Mas…”, começou o jovem, mas depois calou-se e voltou para o seu lugar. Ao lado, bem à vista, a bolsa que ele tinha deixado para trás.

u

Olha a bolsa, uma e outra vez, depois abre-a e espreita o seu interior. Vê a carteira castanha mas ignora-a. A sua atenção dirige-se para o conjunto de folhas A4 dobradas sobre si mesmas. Folhei-as ao acaso, e depois volta à primeira página. O dia está quase a acabar. Falta pouco para chegar ao seu destino.

v

Não tento compreender-me
nem o que me acontece.
Evito quaisquer explicações.

Prefiro acreditar em mim mesmo
e naquilo que me acontece,
o que é muito mais difícil,

mas deixa-me muito mais perto
da verdade do meu ser.

x

Depois do título, numa outra folha, três citações, duas muito breves e a restante um pouco mais longa. Observa-as durante muito tempo e só depois começa, ou melhor dizendo, recomeça a ler.


z

Às vezes digo a mim mesmo que precisava de um pouco mais
um pouco mais disto e um pouco mais daquilo
um pouco mais de paciência, de teimosia, de irreverência
um pouco mais de confiança, de sabedoria, de perseverança
mas, pouco depois, dou comigo a pensar
que tudo o que necessito é um pouco menos
um pouco menos disto e um pouco menos daquilo
um pouco menos de falsa segurança, de medo e de arrogância,
um pouco menos de tudo que em mim é excesso,
tudo o que oculta quem sou,
tudo o que impede que eu seja
um pouco mais, um pouco menos.

k, w, y

Valha-me Deus! Que esquisito que isto está hoje! E ainda ontem as coisas se passaram como de costume. Será que me transformei durante a noite? Deixa-me cá ver: seria eu a mesma que me levantei esta manhã? Quase que me quer parecer que me recordo de me sentir um pouco diferente. Mas se não sou a mesma a pergunta lógica é “Quem diabo sou eu?”. Ah, esse é o grande enigma.
Lewis Carrol, As aventuras de Alice no País das Maravilhas

Nunca ninguém se perdeu, só há verdade e caminho.
Fernando Pessoa

O caminho que sobe é o caminho que desce.
Heraclito

Confesso

venho ter convosco dum país encantado, sem casas, nem campos,nem flores, e sei dizer meu amor. trago-vos as mãos vazias,embrulhadas em silêncio pelos vossos olhos, pelos vossos ninhose digo-vos: são puras como as madrugadas. não pensei vestir-me,nesta viagem, meus irmãos, com as roupas, com a pele húmida dassagradas montanhas da minha terra. tinhapor manto o calor do vosso verde, do vosso sol, e o brilhodas vossas ruas. sou um estranho, por dentro. vim, nú, agasalhado pelo vento, trazer-vos as minhas mãos vazias, amputadas pelo amor. dou-as a quem me contar como é a casa, como são os campos, como é uma flor. dou-as a quem me ensinar a viver sempre no verde, na aurora da vossa paz, no labor, no branco das vossas casas, como se fora um indígena bom. as minhas mãos vazias aqui vos deixo. sei dizer meu entretanto sofro. venho ter convosco e vos pergunto. adivinho vosso cuidado com vossos filhos, com as hortas mortas, necessárias e belas, cinzentas como um poema por escrever, suaves e puras como o linho dos vossos lençóis, enquanto as manhãs crescem e são tardes e noites, e os homens morrem no país donde venho, com casas, com campos com flores.
José António Gonçalves
Tem o Poder da Água
Editorial Éter
(Foto:Paulo Madeira de olhares.com)

Ilhas



UM PORTO

Um porto é como uma seara plantada de mastros,
uma azáfama de gritos;
brancos fumos desvanecem o azul;
vou por estas horas em que se deambula de um vinho
a outro vinho, de uma boca salgada a um beijo.

Não haverá regresso, ainda que o digas.
Este oceano começa no tédio das casas.
Giram as hélices ao fundo de uma cabeça citadina -
isto é: na amarga vida das metrópoles.

O ofício das vagas, a minúcia das velas -
outro destino não queria:
empunhei o leme, recolho a âncora, bebo, escrevo -
é como o ranger de desusadas portas, um alarido de
ferros,
uma vibração de ossos há muito sentados.

Tudo acaba na sedução das cadeiras,
das páginas onde soletramos um sonho atlântico,
o ancoradouro que nos prende:

ainda que o digas não partirei -
conheço a nostalgia que vive para sempre no coração da
infância e dos barcos.

José Agostinho Baptista


Ao conhecer um poeta, costumo interessar-me pelas suas origens. Não que a poesia seja reflexo do meio que circunscreve o criador; afinal, "tantos mundos foram já reinventados entre quarteirões exíguos, na invariabilidade de cidades onde escorrem os dias". Mas há poetas-lugares que, sendo cidadãos do mundo, se transmutam invariavelmente em aldeias. Em casas.
Assim é José Agostinho Baptista. Etéreo, e familiarmente ilhéu.


(pintura da Caspar David Friedrich)

Cátia Vanessa Silva Campeã Olímpica!

Segundo o “Publico” de 9 de Outubro passado, “a aleta grega Ekaterini Thanou poderá vir a ser contemplada com a medalha de ouro dos 100m relativa aos Jogos Olímpicos de Sidney, em 2000”, no que seriam “os ‘danos colaterais’ do processo de doping que levou à queda desse mito do atletismo norte-americano, Marion Jones”. Refere também o mesmo jornal que “ironicamente, Thanou foi suspensa em 2004, por um período de dois anos, por ter faltado a três controlos antidoping”.

E pronto, o “Público” ficou-se por aqui. Como sempre, frouxos jornalistas! Como é evidente, esta história não podia acabar assim, estava em causa o prestígio nacional – como já irão perceber. Adiante. Fomos investigar.

Consultando a lista das concorrentes aos 100m de Sydney, constata-se que, atrás das duas atletas já referidas (uma já desclassificada, Jones e outra em vias de o ser, Thanou), em terceiro ficou Belinda Thomas, das Bahamas. Ora bem. Como é óbvio, ao usar um equipamento amarelo berrante, provocou danos irreversíveis no bom gosto das restantes atletas, o que foi considerada uma grave violação das regras do fair play - pelo que também foi desclassificada. Em quarto, Lindsay Mark, da Grã-Bretanha que, à data, usava um desodorizante em spray, libertando perigosos CFC para a atmosfera que prejudicaram (e de que maneira, a Amazónia que o diga - caso aprenda a falar, claro!) todo o meio ambiente. Desclassificada. Em quinto, a etíope Tutu Beliu, que fazia o bigode com gillete de lâmina dupla. Ora, como toda a gente sabe, se a lâmina não for, no mínimo, tripla, uma mulher não pode estar na alta competição. Fora! Em sexto, a bielorussa Tatiana Smirnov que, obviamente, nunca teria passado num teste de alcoolémia, mesmo se feito por um GNR de Faro. Desclassificação óbvia. Em sétimo, a italiana Adriana Fellatio, que tinha pé-de-atleta. Também como é do conhecimento geral, só atletas completos é que podem participar no Jogos - um pé não basta. Andor! Finalmente, em oitavo, Carlos Castro, que também foi excluído devido às análises terem revelado excesso de estrogénio.

E, assim, tudo isto nos traz a Tavira, à fábrica das genuínas Alheiras de Mirandela, na região demarcada do Gilão, onde interrompemos o trabalho de Cátia Vanessa Silva, inspectora de qualidade e grossura, para lhe transmitir a boa notícia.

- Eu, campeã olímpica ?! A sério ?! Mas eu nem participei!

Então explicámos-lhe que teve de ser feito um sorteio entre todas as atletas que não participaram, já que sempre que se fazia um teste antidoping - ou qualquer outro, nomeadamente da carta de condução de pesados ou de QI - a alguma atleta concorrente, dava sempre chumbo e, por aquele andar, nem 2057 se saberia o nome do vencedor do lançamento de porco com bandollete dos Jogos de 1912.

- Fogo! É mesmo verdade! Com essa é que me convenceram! Maria, Fatinha, Ula, Drª Bivac, Céuzita, venham cá depressa! – gritou Cátia Vanessa, chamando as suas colegas de trabalho mais próximas, tão próximas que quase ensurdeceram com os gritos da nossa campeã. Logo vamos comemorar, meninas?

E foram - não sem antes Cátia Vanessa ter sido homenageada pela Câmara Municipal, em sessão conjunta com outro galardoado, Zé Manel, futebolista anão da zona que havia ficado famoso por conseguir um autógrafo de Cristiano Ronaldo, ao disfarçar-se de seio proeminente. No fim da cerimónia, recebeu o apoio estatal para a alta competição, ou seja, um calção rasgado que já havia pertencido a Rosa Mota e um pionés torto.

Continuando. Foram comemorar. Mas, por azar, enquanto estavam, pela noite fora, bebendo ginjinhas e discutindo o conceito de estética de Platão, apareceu um inspector olímpico e fez-lhe um teste cultural surpresa. Como não sabia o resultado do último jogo de futebol da XIIª Divisão entre o Cinfães de Baixo e o Boticas Azuis foi, evidentemente, desclassificada.

Aparentemente, um duro revés. Mas nada que desmoralizasse a nossa nova heroína nacional. Pediu a contra-análise, fechou-se em casa a estudar e, três dias depois, na Suiça, deu um murro no Scolari, num gesto de grande beleza fortemente aplaudido por todos os componentes do Júri de Apelo. Foi dispensada da oral (e da anal também) e recuperou a sua medalha, arduamente conquistada enquanto enchia as deliciosas Alheiras de Mirandela de Tavira.

Meus amigos, temos campeã! Viva Cátia Vanessa Silva!