domingo, 25 de novembro de 2007

Dor Bastarda




O ecrã é espelhado. Contemplo e ouço, absorto, as chagas cantadas pelas lágrimas de Brel, e num momento de instintiva esquizofrenia, evade-se a mão emancipada para a cara seca. No reflexo alucinante, desfila em mim a romaria penitente de um amor que não é meu.

Se ignorasse o sentido do meu compasso cardíaco, preencheria a inconsciência da minha dor com a dor alheia, acolhendo-a como coisa minha, e só minha. Se não amasse, se não sofresse, se não existissem adeus para chorar, eu seria toda a dor bastarda do Mundo. Doer-me-ia mais, na angústia dos outros, a incapacidade para os igualar na verdade, superando-os na mentira. Pagar-me-iam como mercenário da angústia, compondo elegias que se despenhariam em abismos onde nunca estive, e vivendo nas noites brancas dos espíritos soltos.

Nessas noites, é proibido morrer, porque já ninguém vive. Nelas, dissecaria, com a minúcia da distância, a agonia, em impudente heresia, e beberia a lágrima guardada de Calígula para ser Imperador na dor. Roubaria a harpa em labaredas de Nero, e tocaria os acordes apocalípticos que ressoarão nas cidades eternas sitiadas pela morte. Sozinho no Mundo, com a ousadia de estar vivo na noite branca, adiar-me-ia sem fim, caindo partes de alma em cada beijo dado no vento. Desafiaria Deus, e o Filho que a Verdade desconhecia. “Basta, porque nunca a dor doeu assim”, vociferavam, juntos e ofegantes, enquanto jogavam bilhar com os planetas e se escondiam em universos que não existem.

De Verdade nada sabiam, porque Mentirosos eram todos, Todos Eles. Escrevi, com a luz crepuscular das estrelas, uma carta de amor cósmica, e guardei-a numa cratera da lua onde fizemos, tantas vezes, amor: “Compreende: carinho são restos decompostos do Amor. Eu não desisti de ti, mas desisti de mim.”

Despedi-me, e gritei nas veias do Universo, um Amo-te finalmente real. Ele veio falar comigo, mas já era tarde. Disse adeus a Deus”. E já morria, quando cometas em trânsito louco espalharam pelo universo a voz que roubaste a Piaf.

"Ne me quittes pas..."

* Al Berto, em estilo caravaggiano, num trabalho de Paulo Nozolino

Estranho Estrangeiro (por Terras de Vera Cruz)

1 Comment:

Alice Matos said...

Boa postagem...

Hoje é Dia Mundial contra a Violência de Género...

"Aqui fica a minha solidariedade para com todos aqueles que sofrem, no corpo ou na mente, da violência dos que se julgam muito fortes mas não passam de reles cobardes..."