sábado, 24 de novembro de 2007

[um texto com cerca de dois anos, publicado por essa altura no blogue d'apontamentos, e que agora apenas renomeei. Desculpem-me o espaço que ocupa.]

COM TODAS AS LETRAS

a

A estrada curvava para a direita, mas o carro seguiu sempre em frente, sem hesitar, feito trajectória: desceu a encosta num longo rasto de pó e imobilizou-se num estrondo surdo contra a árvore isolada.

O homem sentado ao volante, o sangue a escorrer-lhe num fio pelo lado direito do rosto, ficou quieto, de olhos bem abertos e minutos decorreram até que passou lentamente um dedo pela testa, o ergueu em frente ao rosto e procedeu a uma prolongada inspecção.

Depois saiu do carro e ficou de pé ao seu lado, olhou a árvore, o tronco largo, os ramos torcidos, a copa frondosa, e descansou o olhar no horizonte, na direcção do sol que descia. Respirou fundo, inspirando e expirando ruidosamente, deu alguns passos e sentou-se encostado à árvore, de costas para o carro.

Pouco tempo depois fechava os olhos e adormecia.

b

Acordou e estava escuro, demasiado escuro. Por momentos pensou que cegara, mas logo percebeu que tinha os olhos fechados, e tentou abri-los, uma e outra vez, sem resultado. Concentrou então todo o seu desespero nas pálpebras recalcitrantes e acordou para um sereno fim de tarde. E ali ficou, encostado à árvore, respirando pausadamente, os olhos bem abertos.

c

Gosto da sensação que experimento
quando as coisas parecem encaixar-se.
Não como as peças de um puzzle, nada disso,
mas de uma forma bem diferente, como o mar na areia,
uma brisa no verão, os meus olhos nos teus.

Não sei se o mundo faz sentido nos raros instantes
em que sinto que as coisas se encaixam,
mas sei que paro tudo o que estou a fazer,
e fico para ali, alheio, tranquilo, absorto,
todo eu surpresa e deslumbramento.
E muito tempo passa até que desperto.

d

“Boa tarde, algum problema?”
“ Nenhum.”
“Desculpe, é que o vi o estado do carro… É seu, não é?”
“Sim”
“Não precisa de ajuda?”
“Acho que não.”
“Chamou alguém?”
“Não.”
“Mas está cheio de sangue na cara, deve ter dado uma valente pancada. Não quer ir ao posto médico? É perto e eu vou nessa direcção”
O homem sentado no chão não respondeu e voltou a olhar para a linha do horizonte.
“Vem?”
“Sim.”
“Não tem nada no carro que queira trazer?”
O homem voltou a não responder, mas olhou para o carro com vagar, depois aproximou-se, abriu a porta do condutor e retirou do banco do lado uma bolsa de couro que colocou a tiracolo.
“Tem a certeza que está bem?
Sente-se em condições de se deslocar?”
“Está tudo bem”, respondeu ele com um sorriso, e afastaram-se os dois.

e

Na esplanada do café ao lado do posto médico, o homem sentado junto à porta detém o seu olhar na pensão um pouco mais à frente, do seu lado esquerdo. Depois abre a bolsa e espreita o seu interior. Retira uma carteira castanha, observa-a dos dois lados, parece que vai abri-la, mas pousa-a na mesa. Olha de novo para dentro da bolsa e agarra umas quantas folhas A4 dobradas sobre si próprias. Endireita-as. Folheia-as. Parece ler. Volta a guardá-las. Coloca a bolsa na cadeira a seu lado. Olha a carteira sobre a mesa. O dia está quase a acabar. De dentro da carteira tira um bilhete de identidade, olha a fotografia e assinatura, lê o seu nome, filiação, naturalidade, residência, data de nascimento e volta a colocá-lo no seu interior. Também tem cartão de crédito e de débito. E cheques. Olha de novo para o outro lado da rua. Passado algum tempo levanta-se e atravessa a rua.

f

Queria escrever com nuvens brancas num céu azul,
era isso que eu realmente queria,
mas escrevo palavras iguais a todas as outras,
que só eu afinal sei
nuvens brancas num céu azul.

g

“Fica só uma noite?”
“Não sei.”
“Se quiser jantar a cozinha está aberta até às dez horas.”
“Não tenho fome.”
“Uma boa estadia”
“Obrigado.”

h

Subiu até ao quarto, despiu-se, e tomou um longo duche. Depois vestiu-se de novo e deitou-se em cima da cama, de barriga para cima, sem se mexer, a olhar o tecto por cima dele. Não fossem os olhos abertos e quem assim o visse pensaria que estava a dormir.

i

Acordou, levantou-se e foi à janela: Rua deserta; iluminação fraca; silêncio. Olhou as horas: quatro e quinze da manhã. Deitou-se de novo e adormeceu.

j

Aqui e agora,
Neste preciso momento,
Eu sou não sei quem.

l

"A cozinha já está aberta?”
"Começamos a servir refeições ao meio-dia, mas se quiser algo simples como uma omeleta eu posso mandar fazer.”
“Não é preciso, eu espero.”
“Vai então ficar mais uma noite?”
“Sim. Porque não?”
“Tem a certeza que não quer comer nada antes? Já passou a hora do pequeno-almoço mas…”
“Está tudo bem, não se preocupe.”
“Até já.”
“Até já.”

m

As palavras caminham para longe em silêncio.

n

A esplanada. A carteira castanha. O cartão Multibanco.

o

Percorre as ruas sem outro rumo que encontrar uma caixa Multibanco. Quando já não sabe de onde veio, quando quase esquece o que procurava, eis que encontra uma. Tira o cartão, insere-o, marca o código e consulta o saldo. Levanta quarenta euros, olha-os por um momento e guarda-os na carteira. Olha em volta e percebe que está muito perto de um terminal de camionetas. Dirige-se para lá. Uma camioneta está quase a sair. Pergunta ao motorista se ainda dá tempo, e como este lhe responda afirmativamente, compra um bilhete para o fim da linha e embarca.

p

Às vezes digo,meio a brincar, meio a sério,
que gostava de viver num convento,
longe do mundo.

Mas ninguém acredita em mim, riem-se,
e nem por um momento julgam
que tal podia acontecer.

Na verdade, eu sei, não se foge do mundo,
tal desejo em mim é ridículo e nunca
se tornará realidade.

q

“Desculpe, pode puxar a cortina?”
“…”
“É que o sol está a incomodar-me, importa-se?“
"…”
O outro continua a olhá-lo, e a sorrir.
“Não fala português?”
“Falo sim, desculpe!”
“Então?”
“O sol incomoda-o, quer que puxe a cortina, é isso?”
“Sim, foi isso que eu disse. E era mesmo isso que queria dizer.”
“Diz sempre o que quer dizer?”
Foi a vez do outro se calar, e sorrir.Falaram durante muito tempo, um falando muito e outro ouvindo e falando de quando em vez. Entendiam-se às mil maravilhas.
“Tens a boca cheia de palavras”, disse o homem, e o jovem deitou-lhe a língua de fora.
Riram os dois.

r

Em mim existem sempre dois lados
que se afirmam e se negam.
E com tal intensidade o fazem,
que muitas vezes acredito ser
apenas o vazio que os separa.

s

Tenho o dom de recordar
e o dom de esquecer e
um e outro são afinal
uma e a mesma coisa
a que eu chamo ser.

t

"Pare o autocarro, pare!”, grita ao mesmo tempo que se levante e avança em direcção ao condutor.
"Pare o autocarro, pare!”
O motorista imobiliza o autocarro e vira-se para o jovem à espera de uma explicação que não tarda.
“Falta uma pessoa”, diz ele, e repete, como se o outro não tivesse ouvido.
“Está referir-se ao homem que ia ao seu lado, não é?”, diz o condutor a sorrir. E como o outro ficasse agora em silêncio, continua:”Está tudo bem, ele avisou-me ainda há pouco que não continuava. Vinham buscá-lo ali.”
“Mas…”, começou o jovem, mas depois calou-se e voltou para o seu lugar. Ao lado, bem à vista, a bolsa que ele tinha deixado para trás.

u

Olha a bolsa, uma e outra vez, depois abre-a e espreita o seu interior. Vê a carteira castanha mas ignora-a. A sua atenção dirige-se para o conjunto de folhas A4 dobradas sobre si mesmas. Folhei-as ao acaso, e depois volta à primeira página. O dia está quase a acabar. Falta pouco para chegar ao seu destino.

v

Não tento compreender-me
nem o que me acontece.
Evito quaisquer explicações.

Prefiro acreditar em mim mesmo
e naquilo que me acontece,
o que é muito mais difícil,

mas deixa-me muito mais perto
da verdade do meu ser.

x

Depois do título, numa outra folha, três citações, duas muito breves e a restante um pouco mais longa. Observa-as durante muito tempo e só depois começa, ou melhor dizendo, recomeça a ler.


z

Às vezes digo a mim mesmo que precisava de um pouco mais
um pouco mais disto e um pouco mais daquilo
um pouco mais de paciência, de teimosia, de irreverência
um pouco mais de confiança, de sabedoria, de perseverança
mas, pouco depois, dou comigo a pensar
que tudo o que necessito é um pouco menos
um pouco menos disto e um pouco menos daquilo
um pouco menos de falsa segurança, de medo e de arrogância,
um pouco menos de tudo que em mim é excesso,
tudo o que oculta quem sou,
tudo o que impede que eu seja
um pouco mais, um pouco menos.

k, w, y

Valha-me Deus! Que esquisito que isto está hoje! E ainda ontem as coisas se passaram como de costume. Será que me transformei durante a noite? Deixa-me cá ver: seria eu a mesma que me levantei esta manhã? Quase que me quer parecer que me recordo de me sentir um pouco diferente. Mas se não sou a mesma a pergunta lógica é “Quem diabo sou eu?”. Ah, esse é o grande enigma.
Lewis Carrol, As aventuras de Alice no País das Maravilhas

Nunca ninguém se perdeu, só há verdade e caminho.
Fernando Pessoa

O caminho que sobe é o caminho que desce.
Heraclito

1 Comment:

Carla said...

Muito bom!E não é a própria vida um grande enigma?