sexta-feira, 30 de maio de 2008

imagine


Pego no lápis e rabisco a folha. Em movimentos distraídos, alisando texturas do pensamento. Até os vincos já não se distinguirem na superfície aquosa, ardente, dos meus olhos. Só nesse momento paro.
A forma acetinada do lápis atrai-me e deixo-me escorregar no tumulto majenta, em espirais de palavras lançadas, sacudidas pela ponta irrequieta.
Em cenário claro-escuro, desenho personagens encontrando-se numa história. Evoluem no espaço recortando-se como sombras chinesas, projectadas pela luz exterior que invade as paredes. Traço diálogos e silêncios emprestando vida às figurinhas, transportando-as a um mundo de sensações onde a fantasia não tem limite.
Desenho a janela, sento-me no parapeito e sinto um arrepio percorrer-me. Não é o frio dos vidros que me faz estremecer mas a possibilidade de um olhar junto ao muro encontrar o meu vulto e me aperceber. Afasto-me.

Sento-me à tua beira e o delírio recomeça. Na folha, em traços suaves, firmes, decididos, encadeados nos sons que ecoam pela sala. Até se reencontrarem nos meus gestos e na cadência do meu corpo. Como sombras projectadas do teu corpo


também aqui

Carta sem sentido preciso

Não sei falar contigo. Ponto. Aliás, não sei falar com ninguém. (agora sim) Ponto final.
Mas contigo é pior. Basta saber que és tu do outro lado da linha para as palavras fugirem da garganta para um buraco fundo dentro de mim. Sobram-me os monossílabos, essencialmente o refúgio do riso. Deves achar que sou maluca. Não sei porque continuas a ligar-me se nunca te digo mais do que banalidades.
A verdade é que tenho tanto a contar-te. Hoje queria ter-te dito que a ilusão é um salto sem paraquedas para o chão da realidade. Que não devíamos ter querido o Verão. E queria ter-te dado a lista das palavras proibidas para não cortares o fio ténue que ainda nos une. Secreto é a primeira delas.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

" visão do futuro "

Visão do Futuro

O progresso envolve este nosso mundo.
Sentimos a evolução a cada dia passado.
Somos invadidos por um sentimento profundo,
De concretizar tudo o que temos desejado…

E, neste percurso rumo ao futuro,
Muitas vezes na pele sentimos…
O quanto o trabalho é duro,
E, vencê-lo nem sempre conseguimos…

A alma ressente-se então…
Amolecendo, enfraquecendo involuntariamente,
Sem que seja a sua vontade…

E, chegamos à conclusão,
Que devemos seguir o que o coração sente,
E não, um discurso cientifico com prazo de validade…

Catia Rodrigues

MURIEL de Ruy Belo



MURIEL



Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo

http://www.youtube.com/watch?v=C6Sf6oAuaIo

terça-feira, 27 de maio de 2008

Gavetas vazias

De nada adianta procurares o teu homem nas gavetas com meias ou nos copos cheios de gordura: não o encontrarás. Repara que este «não encontrarás» não se aplica apenas ao dia de hoje ou de amanhã. Não voltarás a ver o teu marido. Tens noção do que isso quer dizer? Não voltar a pôr os olhos numa pessoa com a qual se costuma partilhar o tempo e o espaço. Não mais sentir a carne dentro da carne. Passar o resto dos tempos a contemplar fotografias. Tens noção do impacto que pode ter uma simples frase? Não voltarás a estar com o teu marido. Ele desapareceu. Esta é uma palavra errada. O teu marido não desapareceu. Morreu. Como explicar uma morte? Com uma faca. Lembras-te do momento em que ele te disse que ia passear o cão pelas ruas da cidade? Lembras-te? Certamente que sim. Cinco minutos depois de ter pegado o cão pela coleira e de se ter posto na rua, foi interpelado por um sujeito sujo, com cara de vilão, que o assaltou, que o esmurrou, que lhe espetou uma faca na barriga, que o fez esvair-se em sangue. Sabes receber um murro no nariz? Não deve ser como cantar ou ouvir música, deve ser bem mais doloroso. Conheces a sensação de levar uma facada no estômago? Sabes descrever o sabor do sangue na boca? Não procures o teu homem nos cantos escuros da casa: ele não é um fantasma. Poderia ser, reconheça-se. Caminhava como se tivesse asas nos ombros. Os seus gritos eram murmúrios. Claro que te recordas de tudo isto. Eras uma boa esposa.

O tempo passa depressa. Na tua cabeça, foi ontem que te casaste com um príncipe encantado, que te vestiste de noiva e que choraste de alegria por sentires que eras feliz. Nem toda a gente se consegue aperceber de que é feliz, no entanto, naquele dia, tu conseguiste. E foste conseguindo ao longo de vários anos. Bastava que o homem que amavas te beijasse nos lábios para que te derretesses, para que chegasses à conclusão de que, para ser feliz, uma mulher apenas precisava de palavras bonitas e de cafés na cama. Isto foi ontem. A realidade mudou, deixou cair os teus momentos de alegria para dentro de uma caixa de papelão que se guarda na cave. O homem de todos os teus dias morreu. Percebe isto: morreu. Daqui a pouco, um polícia bater-te-á à porta, dizendo que tem péssimas notícias para ti, que fulano tal foi visto morto numa ruela perigosa. Chorarás. Impossível não deixar cair um rio quando se é roubado pela morte. Depois, irás reconhecer o corpo. Durante o caminho, manterás uma pequena esperança de ter havido um engano. «Ele não morreu.» Quando deres de caras com o corpo, verás que aquilo já não é o teu marido, o homem que representava tudo para ti, a tua vida, os teus dias, o teu tempo, o teu espaço. Verás que aquilo, sim, aquilo, já não é um corpo: é uma barriga aberta, um pedaço de víscera no chão, uma boca aberta, uma cara pálida. Um pedaço de lixo.

00:04

URGÊNCIA DA ESCRITA

Algo acontece, algo surge em mim e vou sendo nesta força que me exibe!
Tu passas, chegas até mim, olhar e questionas... vais embora e deixas a sombra.
Muitos são os desejos e as palavras não cobrem o envolvimento, porque a casa ficou vazia.
Lembras do vazio do passado? Ficou lá. Vim aqui para escrever, para ir sendo tal como tu, como tudo o que é. É urgente dizer-te que não te direi. Sim, não te direi, deixo que chegues pelos teus próprios passos. Os passos custam a dar, não dês, sente os teus pés que vou tentar sentir os meus. Aqui, os meus dedos ainda deslizam e o meu pensamento discorre... não sei até quando.
O telemóvel toca, continua a tocar, mas, não posso atender, é mais urgente escrever, ficará para depois. O depois já é depois do agora, por isso é que é depois. Calma! O amanhã anula o dia de hoje e não serei mais o que sou agora, este agora que passou após a inundação do digito seguinte… é por isso que acontece a urgência da escrita.
Acabei de ser mordido por uma melga! Coisa aborrecida. Sim, acabei de dar sangue a um mosquito... preciso colocar algo para atenuar a couceira. Preciso. Estou em casa e em casa vou continuar. Tenho bastantes testes para corrigir, o final do período está aí e é urgente dizer o que não foi dito. Vamos dizer se restar tempo, o tempo de dizer.

Aveiro, 27 de Maio de 2008 – 17:40h
Jorge Ferro Rosa, in http://myspace.com/jorgeferrorosa e Caderno da Alma

Carta à negritude de uma alma...



Foto na Galeria Olhares :http://olhares.aeiou.pt/drown_the_sad_doll/foto1981696.html

Se o tempo pudesse voltar atrás...eu correria atrás dele como louca.
Mas não consigo...só consigo estar parada de pernas cortadas sem ter um passo que me deixe mexer...
Sou árvore sem frutos nem ramos para me proteger do vento que sopra contra o meu corpo estático...sou mais chão de terra que pedaço de estrela por descobrir em noite com a lua a mingar no horizonte.
Estou negra..negra por dentro...mais um pedaço de cinza depois do rescaldo de um incêndio lavrado que o vento ainda não soprou porque ainda exala calor lá de um fundo bem fundo que ninguém alcança...mas que por vezes se sente porque queima ao tocar.
Brancas são as noites deitadas nos lençóis sem coragem para respirar..asfixio gritos cinzentos e suspiros incolores sem ter a mão presa à secura da minha boca.
Se eu pudesse correr em cima do mundo na direcção contrária do inferno, de certeza que iria ver o céu ..nem que fosse apenas de longe. Mas do corpo fiz chama e da minha alma fiz cigarro por fumar..restam-me as lágrimas frias que me decoram o rosto para me apagar sem pressas...Um relógio parou na sala e eu não vi quando as horas desistiram de bater...fez-se silêncio dos risos.


Daniela Pereira
Direitos Reservados

http://devaneiosazuis.blogspot.com/

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Algumas coisas

Google imagem

Desata-me as mãos
No ato
No fato
De te procurar
Deixa-me auscultar
Tuas necessidades
Com
Minhas mãos...
Desata-me
Da-me a possibilidade
De provocar teu corpo
Ao te delatar
Relatando silenciosamente
Teu desatino
Procurando no corpo
Num tatear compenetrado
Adivinhando
Teu paladar...


By Casti

(Teiadepalavras)

domingo, 25 de maio de 2008

Durante toda a sua vida, artur nunca saiu da zona da Serra dos Candeeiros, mas isso não o impediu de sonhar mais alto. Assim, aos 15 anos, começou a construir um escadote com o qual aspirava chegar à lua. Aos 37, contentou-se em entrar para o livro dos recordes do guinness, por ter construído o escadote mais alto de que havia registo.
A serenidade dos 40 anos fê-lo mudar a orientação do seu sonho. Passou a dedicar-se à culinária.

(também na minha casa de todo o ano)

Na rádio!

Blogue das Artes na Rádio!

para ouvir [Aqui]

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Espantosa


Esta escultura de 1992 é da autoria de Sam, mais conhecido como cartunista, e tem o título de Infância. Eu, até há pouco, pensava que era do pintor e escultor colombiano Fernando Botero, cuja característica formal mais evidente é a excessiva rotundidade das figuras que representa.
A escultura está instalada no Jardim do Campo Grande, junto a um lago. Representa uma figura feminina (?), de seios (?) planetários e nariz pontiagudo, vestida de modo masculino. O nariz faz-me lembrar o focinho de uma toupeira. A figura aperta os enormes seios com os braços, como um tocador de gaita-de-foles aperta o fole da gaita. Quando o sistema está ligado, do bico de cada seio jorra um jacto de água de razoável caudal, formando um arco que termina na superfície do lago.
É bonita, é decorativa, integra-se bem no ambiente onde está implantada, alia a estaticidade ao movimento, surpreende pelo exotismo da forma e pela acção, tem a pitada de luxúria e de lúdico que provoca empatia e alegria.
Acho que está muito bem conseguida. Gosto dela.

[Publicado no blogue Universos Assimétricos]

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Revistas...

Uma boa notícia (que podia ser melhor) e uma má notícia.

Conceito



Artur Amieiro, Tensão na cúpula, acrílico sobre tela, 65x81 cm., 2000.

Esta obra teve origem na tentativa de representar o conceito de Flexibilidade, proposto pelo professor de pintura na SNBA. Muito ligado à representação da tridimensionalidade, acabei por transmitir uma imagem muito mais de rigidez e tensão que de flexibilidade.

[Publicado no blogue Universos Assimétricos]

Durante anos, Artur teve como máxima “o que pode o mais, pode o menos”. Manteve-a até ao momento em que deu por si a roer uma maçã, depois de se ter apercebido que usar um sabre para a descascar não dava jeito.
Foi quando decidiu adoptar o “quem não tem cão, caça com gato”, pelo menos, enquanto não desenvolvesse nenhuma alergia a animais.

domingo, 18 de maio de 2008

Se tu viesses ver-me...

Florbela Espanca
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

sábado, 17 de maio de 2008

associação de bloggers anónimos

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Confissão

Verdade primeira:
A tua voz faz-me perder o fio recto dos dias.


Verdade segunda:
Trago a memória do teu cheiro em forma de galho de árvore seco
no bolso de um vestido,
e por isso o mundo não é mais do que o interior de uma peça de roupa.


Verdade terceira:
Morro à sede de um beijo teu.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

e estás tão perto...



dar-te-ia o meu afecto, se a minha ausência não sangrasse na imensidão das noites.



também aqui
Fotografia de Bogdan Jarocki

40 POEMAS DE JOAQUIM ALVES



POEMAS À JANELA





@joaquim alves, 2008

Os 40 poemas, quase todos originais,

publicados no Recanto das Letras (Brasil),

foram agora recuperados

na Púcara do Jaquim.

*

ABRIR

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Astronauta

Tens seis anos. Queres ser astronauta. Se não fosses tão bem tratado pelos papás, não te imaginarias tão bem colocado no futuro. Talvez sonhasses com ocupações mais modestas, como a de bombeiro ou de polícia. Mas tens seis anos e não precisas de te preocupar com problemas que não te dizem respeito.

Daqui a uns anos, chegarás à conclusão de que, mesmo tendo muito dinheiro nos bolsos, não podes ter tudo. Não serás astronauta. Nem sequer de números perceberás. Serás artista. Artista. Agora, por não saberes o que isso quer dizer, olhas para os escritores, para os escultores e para os pintores com um ar de admiração. Vem-te à cabeça a possibilidade de os livros que o teu pai vai lendo tenham sido escritos por gente que vivia do campo e de puros ideais. É compreensível que assim penses: és novo.

Um dia, terás filhos e também eles chegarão a uma altura na qual quererão ser astronautas. Quando esse momento chegar, andarás na casa dos quarenta. Os teus papás já terão morrido. Não terás dinheiro. Precisarás da ajuda de todos os teus amigos (e inimigos). Acreditarás que o mundo é frio e feio. Escreverás poemas. Tu, que sonhavas com o topo do universo, serás um desgraçado, um homem sem jeito para nada que tenha utilidade económica.

Mas tudo isto acontecerá no futuro. Neste preciso momento, estás a comemorar o teu sexto aniversário. Mordes a vela do bolo e pedes um desejo: «Que seja astronauta.»

00:04

Série Mulher - Solidão


Acrílico s/tela
Técnica mista
ano 2008
100x100cm
Presente na Trienal de Macieira de Cambra

terça-feira, 13 de maio de 2008

Vício interior

Pela maneira com que não olhava as coisas dava a entender que queria sempre chegar cedo. Não ligou aos jornais, aos poucos ignorou a televisão. Houve momentos que nem parecia estar com roupa. E pela maneira com que olhava as pessoas dava a entender que queria sair tarde. Conversou, riu-se e sentou-se perto de alguém, e de outro alguém e de outro alguém e de outros. Durante as palavras triunfantes, tocava no ouvinte. Como uma pedra no charco, questionava se a bebida era do agrado do falante. Tudo se tornou para mim claro, quando nos cruzámos na casa de banho. Vi-o ignorar o espelho e olhar o seu rosto. Olhava fixamente os seus próprios olhos. Que droga tomaria para ser tão viciado no que interessa aos outros, sem que os outros percebessem o interesse que tinha, naquilo que só interessava a ele?

Também aqui e aqui

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Nostalgia


Textos


From: anaprado, 10 months ago








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Em fuga




domingo, 11 de maio de 2008

Sebastião, assim que chegou a Vila Clara, ficou logo conhecido como o cangalheiro. Não lhe agradava muito mas, realmente, era o feliz proprietário da funerária “O Desejado”, cujo slogan, no anúncio da rádio local, era: “tenha o enterro que sempre quis”.
Era também o trintão mais cobiçado da vila. Isso já lhe agradava mais.

(também na minha casa de todo o ano)

Poema com fôlego curto




Porque todas as chamas se extinguem...
todas as velas se apagam...
Mas nenhuma palavra há-de morrer
por lhe lamberem o rastilho...


Daniela Pereira
Direitos Reservados

Foto words two by ms73 in DeviantArt

sábado, 10 de maio de 2008

o ciclo menstrual da noite

aí está o primeiro livro da Alice, um evento a não perder, hoje pelas 16 H no auditório da Casa-Museu Abel Salazar em S.Mamede de Infesta.


sexta-feira, 9 de maio de 2008

Duas cidades, a distância


É um fim de tarde e há pressa pelas ruas.
As pessoas passam e não sabem
que trago a morte dentro de mim.
Não sabem que os teus olhos eram
como duas chamas e que, por olhar-te,
sou apenas cinza que se arrasta pelos caminhos.


É um início de noite e há pressa pelas ruas.
As pessoas passam e não sabem
que estou numa cidade e que tu estás
noutra cidade e que essa evidência
é tudo o que me resta.


É já noite longa e há silêncio pelas ruas.
As luzes da cidade apagaram-se
e as pessoas já dormem em suas casas.
Não sabem que tu estás num quarto
e que eu estou noutro quarto e que, por isso,
a minha cama é um caixão que acolhe o meu corpo gelado
e que a tua cama, em outra cidade,
é a palha onde se incendeiam dois corpos.
Foto: Katia Chausheva
Também aqui

METAFÍSICA





não é por não serem brancas

que as
pombas
que não são
brancas

deixam de ser
pombas

só porque brancas não são



joaquim alves

*
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"A metafísica é uma consequência
de estar mal disposto." F. Pessoa
_____________________________




quarta-feira, 7 de maio de 2008

settings 2


Acertara o batimento. Como um relógio apressado, solto de ritmo e espaço.
Sentia viva a noção de desiquilíbrio, estranha, inadequando-se ao momento de tropeçar nos afectos, deixando-lhe sabor acre, de desacerto constante. Repetindo-se, arrastando consigo a sensação de perda, de tempo irrecuperável, intransponível.

Escutava os silêncios, os que se detinham por trás dos sons. Cuidadosamente, dobrava as palavras, guardando-as em sentidos outros, envoltas em pacífica espera, ao correr das horas e dos dias.
Ajustara a imagem, não fosse desapertar-se o que cuidadosamente embrulhara há tanto tempo. E nessa segurança enfrentava o olhar que se lhe oferecia resguardado por opacidades, onde apenas intervinham imagens a preto e branco. Os coloridos, esses, desenhava-os em pensamento à medida das emoções.

Mas bebia-lhe as palavras. Saboreando os gestos, delineados ao ritmo harmónico de teclados batendo breve nas pontas dos dedos. E sorria a esse reflexo projectado.
Adivinhava-lhe as frases. Completava-as mentalmente como se as esperasse, de tão apercebidas em reacções contabilizadas pelos anos. Olhava-o, ternurenta de palavras não ditas, suspensas, remetidas a um vocabulário cauteloso, na lonjura de vivacidades desejadas.

Observava-se, espreitando cada gesto, olhando-se do exterior, sentada no limiar do sentimento.




também aqui

Fotografia de Michele Spinapolice

terça-feira, 6 de maio de 2008

Série Mulher - A dança


Técnica mista acrílico s/tela
2008
100x100cm

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Fred respirou fundo, enfastiado com a humidade e os insectos que zuniam à sua volta. Não conseguia compreender como havia quem apreciasse as zonas tropicais e todos os seus inconvenientes, nem sequer para passar férias. Aliás, se não fosse o seu brio profissional e vontade de cumprir todos os contratos com que se comprometia, nunca daria por si à beira desta piscina, cheio de repelente de insectos e protector solar. Por sorte, quando chegou o seu alvo, não estava ninguém a prestar atenção. Pôde usar a arma com silenciador que tinha escondida no Washington Post com a máxima discrição e sair rapidamente, sem deixar mais pistas.
Gabava-se de não ter motivos pessoais na base dos seus assassinatos, mas este homem que o tinha obrigado a passar dois dias inteiros à beira de uma piscina, estava mesmo a pedir a bala com que foi brindado.

(também na minha casa de todo o ano)

UMA TELA





Ficha Técnica

Título: TIME
Autor: Joaquim Alves
Assinatura: Manus
Técnica: Acrílico sobre tela, com colagem
Dimensões: 120x120 cm
Data: 1995
Propriedade: Coleccionador Particular

Notas: Homenagem a Sonia e Robert Delaunay,
casal amigo do nosso Amadeo de Souza-Cardoso,
nascido em Manhufe (Amarante), em 1887,
e um dos nossos primeiros modernistas.
Viveu em Paris, no início do século vinte,
onde conheceu muita gente do movimento,
e veio a morrer - jovem - de gripe pneumónica
(tb conhecida como "gripe espanhola"),
na sua terra natal, em 1918.

*
Muito mais haveria a dizer, mas ficam estas dicas,
para que - quem quiser - descubra o nosso Amadeo,
que amigo também foi de Amedeo Modigliani,
nascido em Livorno (1884).





sexta-feira, 2 de maio de 2008

NO ACRÉSCIMO DAS CONTRACÇÕES

O mundo parece cada vez mais desconcertante, trocam-se fluxos materiais, num pulsar intenso de energias. O universo encontra-se numa contracção constante, tomado por êmbolos invisíveis, grandezas que ultrapassam as expectativas do impulso sensível. De equilíbrios e desequilíbrios forma-se o jogo! A vida é o jogo de acção e comunicação de fenómenos, situações menos habituais mas evidentes nos seus estranhos comportamentos. A ânsia é pelo equilíbrio, aquele que na hora do silêncio te falei.
Processos somam-se a processos… a instabilidade implica sistemas, probabilidades no acompanhamento de simetria. A energia agita-se no grande complexo, este que sendo meu também é teu. Criam-se necessidades, vertentes crepusculares na ordem dos enlaces da noite. O potencial do ser está em tensão e a aventura do conhecimento cria condições exigentes, somas de vida mesmo no insignificante, interacções megalómanas de extensão! Invasão de hierarquias… crenças nos deuses de faz-de-conta, o inapropriado que se consola com a baralhação, somas de tudo que não são nada. Tomo-me na trajectória do parêntesis e vou na desorientação do tempo infinitesimal, no movimento da linguagem fisiológica, execução e maquinaria, o modo mais próximo do ambíguo. Criou-se um vácuo e a visão exibe um outro espelho, sem parágrafos, apenas apropriação de possibilidade, na relação de probabilidade linguística, um todo de vibrações que se anulam na lentidão do tempo que ainda não é tempo.
Fico contigo no acréscimo das contracções sem resposta, fico sem mais, assim, no arquipélago das metáforas.

Aveiro, 02 de Maio de 2008 – 21:32h
Jorge Ferro Rosa, in Caderno da Alma

quinta-feira, 1 de maio de 2008

A ponte

Teoria: O que fazer ao corpo? Reduzi-lo a cinzas, a pólvora, como se o animal não tivesse sentimentos, sensações. O que fazer à dor? Matá-la, dando tiros no peito daquele que sofre. Não só pontapear o cão como tirar-lhe o ar, asfixiá-lo com um pano de cozinha. Destruir a dor no cão é matar o corpo. Só matando o corpo se consegue apagar o grito de socorro, a vontade de chorar, o medo da morte. Só morrendo se deixa de ter medo.

Realidade: Estás trancado num automóvel, tens o cinto de segurança colado à barriga, o rádio toca músicas que te fazem lembrar um tempo que não este – um tempo melhor, mais apaixonado, no qual as mulheres te achavam belo. Gostas de velocidade. O teu automóvel topo-de-gama parece um trovão a deslizar pela estrada. Vais sozinho. Não tens tido melhor companhia nos últimos tempos do que as sombras do teu passado, do que os fantasmas, do que as almas dos que vão morrendo.

Teoria: O corpo não presta, não é resistente, não foi feito para durar. Andamos anos pensar que os nossos amigos não morrem, que a mãe estará no altar para sempre, que o pai será para sempre a besta que nos persegue, e depois acaba tudo. Primeiro um, depois outro e outro e outro. Acabam todos no caixão. O corpo tem quase tanta necessidade de defecar quanto de beber água, no entanto, não se pode deixar de pensar que existe um grande pedaço de estrume que não é defecado. O homem não consegue cair na sanita. Assim se explicam as rugas, o apodrecimento ou, se se preferir, o voltar a apodrecer.

Realidade: A sociedade é constituída por uma multiplicidade de regras, de leis. O código da estrada, por exemplo, proíbe-te de conduzir a certas velocidades. Não podes andar a duzentos quilómetros por hora em lado nenhum. Nenhum. Muito menos quando vês uma ponte. O raciocínio natural seria veres a ponte e abrandares, pensares: «Deixa-me ver se não me parto todo.» Mas não. Conduzes desalmadamente, como se tivesses que chegar ao céu numa questão de minutos. O teu pé toca no pedal do acelerador com um peso de trinta tijolos. Mas os teus olhos dizem tudo: não és louco, não és idiota. Vais morrer na ponte porque nada te liga à vida.




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