segunda-feira, 30 de junho de 2008

O alfobre da poesia

Atingido por um malogro de amor, esfacelou-se-lhe o peito. Aí brotou o poema.

APOCALIPSE

Soa tudo a vermelho novamente.
Apodrecem cascas no asfalto da cidade.
Depois de envernizado o chão escureceu.
Agora assemelha-se a
gota tresmalhada de tangerina estragada
pingando sobre o manuscrito reformado
daquela perfeição encontrada.
Pesadelo-surpresa em óleo fresco de
colunas desafinadas a desafiar estática
sem conseguir evitar de cometer
sempre os mesmos erros, cegos erros.

Nomes números fora de tom
mancham o passado com a ética
das ervas silvestres do adeus,
secas e ultrapassadas,
odeiam todas as especiarias, todos os sabores
dos teus olhos já não serem meus.

Assim quis
regozijar na dúvida do leito,
é prazer vazio
no teu mundo de brincadeira
procuras já alguém,
no meu peito é deserto enublado
preso à abdicação, à tua maneira,
à vivência entre bichos de metal maciço
num insustentável cansaço emoldurado.

Para mim
pessimismo e desistência são esculturas de marfim falso,
são doce masoquismo
são obsceno jogo de ténis onde ninguém perde
são infiéis ecos de prioridades gastas
que esfaqueiam a evolução
na mudança de rótulo ao código de barras,
sem serenidade para meu coração.

Fujo na competitiva adrenalina em
carnificinas circulares e enfeites de Natal
prevendo silhuetas e rotundas a chorar,
sozinhas, até é usual
a preguiça de apagar a dádiva desta chama e
encontrar alívio fora do hábito elíptico, na dor.
Criar um degradée de desgosto.
Ser o cinzeiro amarelo à tua cabeceira.
Esquecer a voz interior que declama o adeus ao amor.


in foto-síntese 2002

domingo, 29 de junho de 2008

Manel, no mesmo dia teve uma inspecção das finanças às suas declarações, bateu com o carro contra uma árvore e foi despedido. Só ao jantar, quando encontrou uma mosca no meio da sua salada, é que perdeu a cabeça, não aceitou as desculpas apresentadas e deu por si a partir a louça, atirar robalos aos outros clientes e até partiu uma cadeira. Foi levado pela polícia e teve de passar a noite detido.
Três anos depois, concluiu que, afinal, foi o melhor dia da sua vida: foi o dia em que conheceu Maria, a agente da PSP responsável pelo seu processo, por quem se apaixonou, e Valdomiro e Rafa, os seus companheiros de cela que lhe trouxeram novas oportunidades de trabalho. Tinha era o cuidado de evitar que Maria e os dois sócios se conhecessem e percebessem quais eram as respectivas actividades, por um certo receio que não compreendessem que escolhia as suas companhias para lá das actividades que mantinham.

(também na minha casa de todo o ano)

sábado, 28 de junho de 2008

AO TEU NOME




ao teu nome

nada acrescento

apenas

o sentimento

que me permite

tratar-te

por amada





..............................

Memória versus Esquecimento



Memória: Quando um homem de barba rija, que escarra, que arrota, que vomita, se põe a chorar por uma fêmea, não tem outra solução que não seja atirar-se juntamente com os restos do jantar para dentro de um caixote do lixo. Isto dizia Adam, que garantia que nenhum homem deveria sofrer por uma mulher. Todavia, à semelhança de outros indivíduos, também o que defendia a indiferença dos machos em relação às mulheres padecia do lado esquerdo do peito. E muito. Mas nos cafés, onde a moralidade masculina nunca poderia ser abalada por coisas tão banais como os sentimentos, Adam nunca se mostrava fraco. «Para mim, elas são todas umas porcas. Levo uma para a cama, amanhã outra. Elas procuram todas o mesmo que eu: ejaculação, ejaculação. Um dia, uma delas disse-me que queria falar sobre um assunto muito sério: estava apaixonada por mim. Sabem como sou, caros colegas, disse-lhe que comigo não existem sentimentos mais elevados do que aqueles que o pénis proporciona.» Às vezes, de cerveja na mão, Adam trocava as palavras por piropos. Não se envergonhava por elogiar o rabo de uma mulher que nunca desejaria passar uma noite com um tipo ridículo.

Esquecimento: Eva considerava-se feliz. Durante muito tempo, fora casada com um homem que não amava nem desejava. Agora, a conversa era diferente: vivia com um jovem mancebo que a endeusava, que tratava os filhos dela como se fossem seus, que dizia amá-la mais do que o céu azul do Verão.

Memória: É verdade que uma pessoa pode conseguir manter uma história verdadeira e uma falsa. Mas não é verdade que uma história falsa possa existir na mesma medida que uma história verdadeira. Adam era um sujeito solitário que, por vergonha, por não se querer sentir humilhado, passava o tempo a inventar ficções. Dizia aos amigos que não precisava de amor, de mulheres, de prostitutas, de crianças, de família, de nada. De certa forma, não estava errado, uma vez que não tinha ninguém. Nem mesmo os seus amigos se poderiam considerar dignos do nome. Adam conseguia manter histórias verdadeiras e falsas. Mas, enquanto as histórias verdadeiras não desapareciam nunca interior do homem, as histórias falsas, por não serem reais, não conseguiam sobreviver durante a totalidade das vinte e quatro horas do dia. Quem o ouvia falar, recebia informações falsas que, de tanto serem repetidas, circulavam como verdades: não tinha filhos, não tinha mulher, não tinha nada, à excepção de grandes prazeres hedonistas. À noite, no escuro do quarto, a história verdadeira suplantava a mentira: havia uma mulher chamada Eva que o abandonara, que o tratara como um cão, que não queria saber dele, que lhe pedia centenas de euros para a educação de crianças que mal conheciam o pai. Assim se comprova que a força de uma mentira nunca é superior à força da verdade dentro da cabeça de um mentiroso.

Esquecimento: A felicidade não aparece do acaso. Não se descobre como ouro. Não cai dos céus como a chuva. Não tropeças nela como acontece quando a ponta do teu sapato bate contra uma pedra. És feliz depois de muito sofreres. Precisas de sentir muita dor para conseguires pensar que afinal este alegre sentimento existe. É como no mar: depois da tempestade vem a bonança. Esta era a disposição de Eva. A de alguém que saiu de algo muito mau para algo quase etéreo. A de alguém que, apesar de ter estado preso inocentemente, se viu de repente com o prémio do totoloto nas mãos. Compreende-se que a minoria pessimista da humanidade desconfie que o conceito de felicidade possa ser simplesmente inexistente. Compreende-se, de igual modo, que, se o animal está bem, se sorri, se é bem alimentado, é feliz. Melhor: se o homem diz que a relação entre um macho e uma fêmea se resume a ejacular, e se realmente ejacula muitas vezes, é feliz. E ainda é mais do que isto: para ser feliz, o homem que diz que ejacular é bom (e que ejacula), precisa de esquecer, de fazer desaparecer do pensamento tudo o que faz lembrar os tempos em que o esperma não se dava a mostrar.

Memória: Antes do bem, está o mal. Por vezes, não chega a aparecer o bem. O mal é muito forte. Muito forte. Quase mais forte do que os pregos que impedem que duas mãos se descolem de uma cruz. Sentado na cama, nu, a fumar cigarros atrás de cigarros, Adam costumava passar as noites com o telefone encostado ao ouvido. Marcava um número do qual o seu cérebro não se conseguia desapegar e não falava, só ouvia. «Estou?» Sempre esta palavra. Como se não houvesse outra no mundo. Adam não falava porque sabia que nenhuma palavra o salvaria da perdição. Do outro lado do telefone, havia uma mulher que tinha dado um passo em frente no seu caminho para o absoluto. Ele é que não se conseguira libertar do passado, da saudade, do cheiro a carne e a perfume.


00:04

quinta-feira, 26 de junho de 2008




















Miguel Morgado

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Com as luzes apagadas

.

tinha decidido fechar o coração à chave. em vez disso abria o corpo a quem parasse à sua janela e a olhasse.
até que o corpo se cansou e começou a tremer. nunca tinha sentido nada de semelhante. as mãos primeiro num desassossego, as pernas depois, todo o corpo de seguida.
desejou então que lhe contassem uma estória de princesas, fadas e jardins secretos, como quando vivia de olhos fechados, no sonho. mas os monstros que tinha deixado ficar na sua casa sabiam apenas de entradas forçadas e violentas. nunca tinham ouvido falar de um rosto encostado a um peito, de abraços apertados ou de palavras sussurradas durante o sono. quis livrar-se deles mas a fechadura do seu coração há muito que estava enferrujada, não havendo, portanto, chave que a libertasse.
.

um documentário

uma organização secreta chamada texto-al.

eis o vídeo:


ela já não acreditava em momentos felizes. em dias românticos. em amor, clima, engate, romance.
ele não pensava nisso sequer.
um dia encontraram-se.
ele beijou-a. ela abraçou-o.
e o resto escreveu ela.
quem dera haver resto.
haver antes do resto. Para além do resto.
Mas ela já não acreditava; e não desejava um ''ele'' concreto.
e isso matava-a.
queria tantos eles. então tinha nenhum.
e mesmo que quisesse só um, ''ele'' não ia querê-la.
e então não escolhia.
ficava no canto dela.
à espera.
sempre, sempre à espera.

...o livro que eu não li

Anda por aí um livro
não tem nome
mas tem cheiro
e na página seguinte
tem sempre um rosto
que no fim
recolhe a história
e olha para mim.

e por aqui

Não comentem a fotografia. Melhor. Não comentar. Aguardemos.
por VT

Verão


Artur Amieiro, Verão, óleo s/ tela, 65x92 cm., 2002.
[Cópia de Camponeses Dormindo de Picasso]

[Publicado no blogue Universos Assimétricos]

terça-feira, 24 de junho de 2008

TEJO



ENA, TANTOS BARCOS...






Da minha casa, o Tejo parece um tapete verde.

Às vezes, uma fábrica de navios.

São tantos, a partir e a chegar,

que os meus olhos ficam confusos e admirados

de como é possível haver tantos barcos no mar.

A minha admiração é muito maior,

quando me dou conta que o Tejo é um rio.

Sabiam que o Tejo é um rio?

Sim, é um rio, embora por vezes não o pareça,

quando da foz se aproxima,

como é normal num rio.

Gosto muito de rios. Sempre gostei.

Mas acho estranho um rio com tantos navios,

vedetas, petroleiros, corvetas, porta-aviões

e outras coisas assim.

É por essas, e por outras,

que acho o rio da minha aldeia

mais bonito que o Tejo.

E, juro que nunca entendi,

por que raio de razões

o Pessoa não gostava do Tejo.

Afinal, ele nem sequer tinha aldeia...





mais


O fato novo do imperador


Tenho 31 anos e estou cansado.
Todos os sítios me vão parecendo, finalmente,
igualmente maus.
Todas as pessoas, incluindo as que gostam de mim,
insuportáveis.
Não encontro sentido nem para o que faço
nem para as coisas que deixo por fazer.
Olho para os outros
com a absoluta certeza de quem vê
não semelhantes,
serenos, resignados, envilecidos extraterrestres.
Olho para mim
e sinto-me como se não tivesse outros com quem partilhar.
Para onde quer que eu olhe,
a insuportável mentira que faz ninho, germina, destila
este tempo, este país, este modo de viver
a que chamam
progressista, tolerante, solidário, democrático,
avançado, europeu, e melhor e melhor
que todos os existidos,
que todos os possíveis.
Este modo de viver
onde falta tudo o que foi nomeado.
Que desfez a classe trabalhadora sem uma única bala,
que encarcerou as consciências sem uma única grade,
que me afasta sem um único cassetete,
que me exclui sem um ferro candente,
sem sequer uma estrela amarela na lapela.

Este tempo
de fatos novos,
de Imperadores.




antonio orihuela

poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

segunda-feira, 23 de junho de 2008

AO LONGE

Sonho acordado pela noite dentro

no reconfortante escuro, no frio

os pensamentos sucedem-se como o vento,

rugindo com tal brutalidade contra as portadas

de madeira não-reciclável

que faz voar as pétalas perdidas das oliveiras.


Assobia com tal desmedida força

que impõe esgares de tristeza,

na ruralidade da época natalícia

onde só se fala de metereologia.


De repente

implementam-se curtas paragens na sua raiva,

incrementada pela saudade da madrugada fora...

(sei que estás longe mas sinto-te perto).

O medo de não ter a certeza do que fazes,

a confiança por achar que também sofres.


Quero-te aqui

junto a este bater no meu peito,

sincronizado e errante,

que sempre te procurou e não te quer perder

por nada!


Obsecado maçarico de nostalgia

em que se tornou a minha alma

brota chamas tão altas

que queimariam os arredores do céu.


Mesmo à distância de anos lunares

vejo os teus olhos reflectidos em todo o lado,

na cera vermelha e derretida das velas queimadas

ou na fruta fora de prazo de refeições passadas.

Abraçados à lareira imagino-te

de suaves pálpebras que deixam de chorar,

com tenras coxas de divindade grega bem eriçadas

sopras-me ao ouvido doces vogais e consoantes

de uma tal partilhada sinceridade

que fazem o meu íntimo corar.


Partilhando silêncios,

gostos ou fantasias lívidas de beleza suja,

frágeis fragmentos de simbólicos momentos,

somos dois amantes que o mundo inveja.


Neste caótico caloroso caos

desejo ajoelhar-me eternamente,

qual será a efémera e propícia

conclusão de porcelana?


Pouco interessa o que sei, soube ou saberei

vivo o momento e espero por quinta-feira,

amo-te como nunca amei ninguém e,

posso dormir, finalmente.


in foto-síntese 2001

Artur tinha como aspiração tornar-se o melhor voyeur da sua rua, mas era preguiçoso e pouco discreto, de tal modo que só conseguiu ser conhecido como o tarado que controlava as idas e vindas das vizinhas velhas.
Apesar de incómodo, nunca ninguém apresentou queixa contra ele, agradecidos por causa da vez em que evitou que a D. Laurinha morresse com uma fuga de gás. À cautela, só não o deixavam ficar sozinho com crianças, idosos ou animais.

(também na minha casa de todo o ano)

sexta-feira, 20 de junho de 2008

O inteligente

Não existiam provas palpáveis da inteligência de Adam, no entanto, ela existia e tinha muita força. Quem olhasse para o homem, diria: «Não prestas, não sabes fazer nada, és um mentecapto, um calão, um parasita.» A inteligência dele assemelhava-se deveras a certos sentimentos que, apesar de terem muito impacto, não se vêem.

Por vezes, a olhar para uma mulher que o deixava louco de desejo, Adam pensava: «Se esta mulher me atrai tanto, se daria uma costela para a beijar, para abraçá-la, por que motivo aquilo que não digo não se torna mais forte do que tudo aquilo que é vaidade?

Certos homens são muito inteligentes quando ninguém lhes pergunta nada, quando estão adormecidos dentro do seu cérebro. Têm uma lógica semelhante à da saudade: quando estão presentes, deixam de funcionar.

PARA LÁ DAS PARTÍCULAS DO IMEDIATO

Não vou fazer mais desenho nenhum, nem para isso reúno preparação, apenas vou, sim, vou… coloco a mão em cima do papel, deixo que o tempo avance, olho as curvas, apito no momento, procuro sustento e navego no vazio. Continuo a navegar. Teclo no absurdo dos rios que não correm, lanço-me na viagem dos enigmas, penso um pouco e as sensações são cada vez mais diferentes! Torno-me ausente ficando presente, na rota dos empurrões. Olho a sala vazia, com o silêncio que preenche os cantos e os vermes são invisíveis. Espaços com veneno, ácido, corrosão metálica… caveiras no braço! Implicas com as minhas caveiras, o fim último antes do pó… que aborrecido, toca-se sempre a mesma tecla, repetem-se as tretas da existência e o cansaço absorve as multidões. Sim, também estás lá!... Estamos lá. A saudade é um chamamento; chamei por ti, tu não ouviste, pouca importância dás ao que tem valor, sei que o valor é relativo e as posturas são divergentes. Não faz mal, já me habituei, sigo outros caminhos, esses que se possam ajustar aos meus estados de espírito, ainda que o teu entendimento se altere. São sabores da vida que dão cor à existência! Por aqui, por ali e o todo é espartilhado em átomos e moléculas, experiências de possibilitar a reflexão. Códigos e números que se combinam uma entrega redutora. As diversas reacções da existência exibem o efémero, decalcam as posturas e servem as bênçãos do prazer e as suas contradições.
Deste lado, olho para o outro lado, o que me permite tal contacto é a janela da sala; sinto-me como que numa prisão, com critérios diferentes… serviço da inutilidade de mim sendo útil. Serviço a cumprir! Mais uma, mais duas e outras se seguirão. A mesa está cheia de papéis, canetas, lápis… duas pessoas na frente, exercem-se concentrações sobre o exame, tudo se confirma, tudo é importante, decisivo para o futuro de alguns. O pensamento dá voltas, exercitam-se os neurónios, roubam-se sorrisos na faixa da frente.
Nunca mais chega o fim! O mergulho é feito de disposições enquanto se pressionam teclas, enquanto se assumem dígitos, caracteres que envolvem a animosidade do humano. Não, não te vou falar de ciência nem de filosofia, apenas estou rodeado de partículas enquanto os curiosos anseiam por saber o que estou a fazer. A cidade emite o seu ruído específico, este envolvimento faz esquecer outras situações e a tarde aproxima-me da noite, guardando as virtudes do segredo envolvente, para lá do sono e do sorriso.

Aveiro, 20 de Junho de 2008 – 17:46h
Jorge Ferro Rosa, in Caderno da Alma

Chamem-me Naif

Os Estatutos do Homem
(Acto Institucional Permanente)

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida e, de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único:
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

de Thiago de Mello, Santiago do Chile, Abril de 1964

Eu também sou um grande mentiroso!

Os leitores estão sempre dispostos a acreditar que as narrativas mais intimistas são, sobretudo, peripécias autobiográficas dos autores. O que não passa, geralmente, de um engano de leitores que não escrevem. É certo que, às vezes, o escritor também faz a catarse da sua vida, nas páginas que escreve. Mas sempre muito misturada com episódios que nunca viveu. Mente. Para tornar a história mais interessante. O escritor goza desse privilégio de viver outras vidas, outras peripécias de vida. Senta-se, não só para escrever, mas também para viver as vidas inventadas.

«Um dos princípios da criação literária é a invenção, a imaginação. Somos mentirosos; todo o escritor que cria é um mentiroso, a literatura é mentira; dessa mentira, porém, sai uma recriação da realidade: recriar a realidade é, assim, um dos princípios fundamentais da criação» – Juan Rulfo (1918-1986).

Escrever, sei-o agora, é essa liberdade de mentir que o cidadão comum não tem. O cidadão é alvo de uma enorme censura social sobre a veracidade das suas afirmações. O mentiroso é votado ao desprezo.
Um escritor, pelo contrário, não só «está autorizado a mentir», como as suas mentiras são alvo de elogios, por parte de críticos e leitores, tanto maiores quanto maior for o tamanho da mentira, a que também chamam criatividade.

É curioso! É libertador! É muito motivante!

[Publicado no blogue Universos Assimétricos]

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Estrelas em pó...




Que importa o sentimento

se é sozinha que o sentes?

Alguém abriu uma janela para ti

com vista para um céu repleto de estrelas

mas deixou-se ficar escondido na sombra

a ver-te a olhar tão sonhadora...

e tu sonhas...

sonhas porque és mais feliz a sonhar...

Tens flores nas tuas entranhas

semeadas sem adubo

mas lindas...

lindas cheias de cor e de brilhos..

tão formosas que elas são

nos seus prateados...

Há aroma de mar nas pétalas

e rios a acenar-lhes nas curvas...

Tens sorrisos nos olhos

e bonecas de louça

esculpidas na tua boca...

tão frágeis os teus lábios magoados...

Que pedra te feriu tão fundo

para fugires até das rosas

que encontras no caminho?

A lua está cheia...

cheia de sonhos e de fantasias desesperadas

e mesmo assim a escuridão

ainda chega a nós

que na realidade não sabemos existir...

Que importa o sentimento

que te arrebata os pensamentos

e os gestos mais secretos?

Não és segredo por ti murmurado...

por ti dito sem medo...

Existem coelhos brancos

guardados na cartola...

mas tu não queres magia...

queres a ilusão do sentir

e sentes que o mundo perdeu a cor...

que as estrelas são fabricadas em série

e nenhuma delas é especial...

O teu paraíso tem a janela fechada

e eu não a consigo abrir...

Se eu for uma estrela..

serás que dás por mim

assim tão enevoada?


Daniela Pereira

Direitos Reservados

segunda-feira, 16 de junho de 2008

.
querias que o teu corpo fosse apenas o teu corpo.decides atear-lhe o fogo com lumes passageiros na esperança que o cheiro que ele deixou se apague.mas esqueces-te que é Dele o odor a carne queimada que agora libertas.
.
[Também aqui]

domingo, 15 de junho de 2008

Artur não gostava de filmes de ficção científica. Quer fossem de aventuras no espaço, futuros alternativos, invasões de extraterrestres ou mesmo pragas desconhecidas, era género que não lhe agradava nada por ter um receio absurdo que fossem coisas que pudessem acontecer a qualquer momento. Em matéria de enredos fantasiosos, preferia comédias românticas, ao menos faziam-no rir.

(também na minha casa de todo o ano)

sábado, 14 de junho de 2008

O desprezo

Dás de caras com um homem que desprezas. O que fazes?


Dou-lhe um murro na cara, no estômago, no peito. Aperto-lhe os testículos com as mãos e faço-o dar gritos do tamanho de montanhas. Emprego-lhe pontapés nos joelhos, nas costelas, na cabeça. Faço-o sangrar, faço-o chorar. Mato-o sem o matar. Faço-o preferir morrer do que estar perante mim a sofrer. Aplico-lhe tanta pancada que nem o melhor dos médicos o conseguirá deixar inteiro. Cuspo-lhe na cara. Um escarro verde na cara. Coloco-lhe os dedos da mão direita no pescoço e tiro-lhe o ar. Olho-o nos olhos. Olho-o nos olhos e faço-o chorar a olhar para mim. Digo-lhe: «Não prestas.» E ele aceita, uma vez que não lhe resta mais nada do que aceitar. Humilho-o. Parto-lhe a cabeça. Parto-lhe o crânio com uma pedra de calçada. Esmago-lhe o focinho chamando-lhe nomes. Corto-lhe a pele com uma lâmina. Corto-lhe a carne, corto-lhe o sangue, corto-lhe a língua. Chamo-lhe nomes. Nomes e mais nomes. Arranco-lhe dentes com um alicate de electricista. Parto-lhe dentes com murros. Dou-lhe joelhadas na barriga.

Dás de caras com um homem que desprezas. Bates-lhe. O que fazes se ele te pedir desculpa pelo desprezo que fez levantar em ti?

Bato-lhe mais, sempre mais, como se não houvesse tempo para mais nada. Murro um, murro dois, murro três. Pontapé no focinho. O sangue a escorrer pelo nariz. Os golpes de lâmina na cara nojenta, no focinho peçonhento. Os gritos de dor. O pedido de perdão e o sabor da vingança que não é vingança mas que, mesmo assim, nunca deixa de ser agradável. Bato-lhe mais. Mais. Mais. Mais. E vejo-o com dor, com muita dor e solto gargalhadas alarves. Baixo as calças e deito-lhe urina e fezes em cima. E, quando já não me restarem fezes, soltarei o perfume dos intestinos para cima do nariz dele. E vomito-lhe em cima. E aplico-lhe mais pontapés no focinho.

E o perdão? E a culpa?

Puxo do revólver e disparo dois tiros. Acerto-lhe no pé esquerdo. Vejo-o quase morto e não me sinto culpado. Não me posso sentir culpado. O homem é nojento. Imita-me, persegue-me, odeia-me, odeio-o. É um parasita, um reles, um imbecil, um idiota, um ordinário, uma prostituta, um touro. Não posso deixar de o culpar por me perseguir, por querer ser tão igual a mim, por querer ser eu, por querer ter o meu nome. Não o posso perdoar por vê-lo a lamber os pés de todos aqueles que lhe oferecem comida. Os dentes podres dele dão-me nojo. O penteado dele dá-me nojo. Todo ele é um nojo. Bater-lhe, cortar-lhe os braços, furar-lhe os olhos com uma agulha, puxar-lhe as orelhas com uma dentada. Quebrá-lo.

00:04

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Ele sabia que, mais tarde ou mais cedo, encontraria uma mulher que o quisesse fazer sentir alegria no peito. Só não sabia que, quando a encontrasse, a quantidade de dor que ela lhe traria seria superior à de felicidade.

Ela costumava dizer que, em termos de relações amorosas, era a pessoa mais infeliz do mundo. O homem da sua vida enganara-a vezes sem conta. Os outros – aqueles com os quais ia fornicando sem sentimento – não existiam, eram lixo.

Ele pensava que o mundo era um bom sítio para se viver. Acreditava na beleza da natureza, na bondade dos animais.

A partir do momento em que deixou de ser amada pelo homem que a fizera deixar de acreditar no Céu, ela não mais separou indivíduos da multidão. Apenas continuou a ir para a cama com diferentes homens, porque se queria vingar de todas as traições que recebera em tempos de ingenuidade.

Mal a viu, ele achou-a perfeita. Pediu-a em casamento. O máximo que conseguiu foi uma noite com ela. Ele ainda tentou procurá-la novamente, no entanto, mal o conhecera, ela avisara-o: «Para mim, és pó.»

quinta-feira, 12 de junho de 2008

"O Estrangeiro"

Há dias difíceis e a leitura ajuda a desviarmo-nos das vertigens da realidade.
Esta semana embarquei na viagem rumo ao mundo de Albert Camus para o desbloqueio das minhas próprias imagens, e foi reconfortante.


«Um instante depois, ela perguntou-me se eu a amava. Respondi-lhe que isso nada queria dizer mas que me parecia que não. Ela ficou com um ar triste. Mas ao preparar o almoço, e a despropósito, ela riu ainda de tal maneira, que a beijei. Foi neste momento que rebentou a discussão em casa de Raimundo.» (op.cit Camus 1949 in "O Estrangeiro")

Os monólogos insurrectos - XII

Ainda há mortos por florir nas âncoras. Não falam. Trazem seringas na boca e o sangue cosido à terra. Fundam raízes de linfa e abdicam das veias, nada após nada, somando os lábios ao coração das petúnias. Os mesmos mortos.
Assinam a noite. Vêm do horizonte das valsas, sem leme, com certidões de ódio vedadas a solidão. O mesmo silêncio, o mesmo quebranto. Os mesmos mortos.
Se falassem, estaríamos ambos mais longe do dom dos cancros. Eu e tu. Inscrevem-nos os órgãos por ordem alfabética e aguardam, clandestinos do destino, em idades vazias à beira do incesto.
Vem. Longe é uma palavra que arde na boca. Velemos a pele que jorra dos ossos como perfumes em lume brando. Levemos ao altar a tibieza das formas e enchamos os adros com exércitos de búzios. Ouve-os. Dentro estão as pautas da última chuva, quando o mundo era ainda uma janela plácida de barcos a ovular.

terça-feira, 10 de junho de 2008

a descoberta

Do alto da fortaleza onde vivo preso,

por vezes, penso ver tudo com tremenda clareza

mas não me encontro nem sigo caminho,

não tiro quaisquer conclusões,

não possuo nenhum método matemático,

nada, apenas sinto as imagens que invejo e

com elas atormento-me em noites de incrível paixão

e precalços de utópica inconsciência,

por enquanto, é meu único mapa através

do delírio da procura parada que não pressigo,

enclausuro tudo num fosso de lava e beatas daninhas,

chega a rodear e depôr o que digo conhecer

mas muito pouco chega alguma vez a acontecer.


Sinto-me triste, deprimido, desiludido com a vida

com pena de mim mesmo, é verdade

é uma fase, vai passar e voltar, rio-me dos

movimentos previstos que se sucedem como os previ e

choro oceanos, mato o que posso, odeio

tudo, odeio todos, odeio-me acima de tudo o que falta odiar,

por quem ainda tenho receio de magoar, mas

muito pouco resta para degradar, nada evito

nem tento melhorar, consumo-me para me libertar

da pouca paciência necessária para não falhar;

não cairei nesse engodo de eterno aborrecimento e fartura

sob a forma de linha de conduta socialmente correcta ou

seria auto-declarado oficialmente morto e desistiria de sofrer.


Assim nos deixo ficar a abrir e fechar a janela

com a testa encostada ao vidro húmido da tentação do exterior,

sentindo suor fresco e mortífero, desesperante, a escorrer-me

ávidamente pela cara e costas abaixo, inerte, sinto-o a

penetrar sem perdão, nas quatro paredes desta cega cela,

no quarto da fustigada fortaleza perdida da figura

Mãe que lhe deu alento e ensinou a moldar manias à

sua imagem e interesse até que, no limite da demência,

cortou as ténues âncoras que o mantinham vivo

a esse abrigo injusto de dependência e foi-se embora

sem olhar para trás, abandonou sua criação, culpou-a por

todo nosso sofrimento e saltou para outro

coração obsessivo com o qual esqueceu o passado.


Digo-vos que sei tudo mas não me levem a sério,

simplesmente porque leio, respiro, tenho olhos e tudo é igual

feito da mesma entidade indiferente a quem demos

poder para receber dádivas com capacidades sádicas de

aguentar mutiláveis terríveis desventuras e insistir e lutar

contra a incompreensão dos desígnios da sorte

inexistente; sei disso e desejo aquela inocência, o início do

desconhecimento da beleza que tanto magoou,

hipotecou o futuro nas chamas cujas chagas ainda sangram,

nada será igual agora que me ofereci como sou, quando

deixei mentiras apoderarem-se do ego para não perder o

que nunca serei, beijei uma ilusão, abraço fantasmas e

hoje tenho medo indiscrítivel de ser novamente rejeitado.


Só neste papiro desperdiçado, reciclável e comercializável

conheço a hirta honestidade, aqui nada humano tenho

a esconder e aquém elevei-me do espírito do reconhecimento,

ninguém lerá, nesta garrafa boiável não tenho nome, nem quero ser,

sempre aqui agi, dando prazer a quem não sente, sem sentir

falho de todas as formas metafísicas existentes e imaginárias;

sei que todos morrem e escrevem mesmo sem caneta, nunca

precisam de ninguém até terem alguém, a falta de toque humano

congela a pele e vai-se deteriorando a partir de dentro até

que nada conseguirá focar por prazer, só me rirei alto

para toda a gente ouvir a falsidade e exaltação da felicidade

destas redundâncias e oportunidades que desaparecem pelas

ruínas e catacumbas esquecidas nos olhares trocados e não retribuídos.


in foto-síntese 2003

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Num Bilhete de Ida e Volta

Abro
mil asas
vôo
lá vou eu

Deixo p’ra trás um rasto de irmãos
sua luz clareia as minhas mãos
escrevo uma fase à luz que não há
até sempre, ou seja, até já

Vai
corcel fogoso a galopar
par a par
com a paz tardia deste mar

À volta
à solta
num bilhete de ida e volta

Abro
mil asas
vôo
lá vou eu

Estás o mesmo, ou fui eu que mudei
mudamos todos, eu só sei
que enquanto isto não é o que for
rirá por fim quem ri melhor

Vem
rasgar os breus do alto mar
que a lutar
algum repouso dse há-de achar

À solta
à solta
num bilhete de ida e volta



Álbum Coincidências de Sérgio Godinho
Letra Sérgio Godinho - João Bosco

Retratos

Na sala da casa de família, preparo-me para substituir o casquilho da única lâmpada, calcinado pelo calor e pelo tempo. Os retratos dos ancestrais, a toda a volta da sala, olham-me sisudos, graves, nos seus fatos domingueiros. Sem escadote, encavalito-me num banco sobre uma cadeira. Os retratos atentos, tensos, parecem dizer: «Tem cuidado filho/sobrinho/neto!». Completo o trabalho, arrumo a sala. A lâmpada já acende outra vez. Os retratos fitam-me silenciosos, mas parecem sorrir.

[Publicado no blogue Universos Assimétricos]

O telefone tocou. Atendi e dei por mim a ouvir as suas queixas sobre as cataratas e o reumatismo. A concordar que tinha sido boa ideia chamar a polícia, porque a festa de vizinha do lado se prolongava barulhentamente para lá das 10 da noite. Mais que isso, dei por mim a pedir desculpa por não me ter lembrado de perguntar pela sua filha e netos (não fazia mal que me tivesse esquecido do genro que, aparentemente, não presta para nada) e a desejar que estivessem todos na melhor das saúdes.
Desliguei o telefone sem ter conseguido que a senhora parasse 10 segundos para me escutar e perceber que tinha ligado o número errado.

domingo, 8 de junho de 2008

MEDO DA DOR!


Não ouso mexer-me. Já acordei?
Por onde andarão as minhas mãos?
Tenho medo! Não quis acreditar e desejei…
Que de olhos fechados, os ferimentos estão sãos…

Lembras-te? Humilhaste-me e perdoei…
Não ouso nem recordar todos os vãos
De tão perdida, com as feridas, andei…
E nem sequer ouso saber das minhas mãos…

Foi grave o acidente que me matou?
Ou apenas esta dor que minha alma sonhou?
Sem que minhas mãos descobrissem…

Mas não ousou mexer-me. Tenho medo!
Para descobrir minhas mãos é cedo…
Mesmo que por piedade mo encobrissem…


Hospital Pulido Valente
09.04.08

sábado, 7 de junho de 2008

hiffen



quando penso: amo-te, os meus lábios emudecem.
o traço de união separar-nos-ia.


também aqui
fotografia de katia chausheva

Convite para lançamento



Aqui deixo o convite para o lançamento do livro Um desnudar de alma da autoria da "Menina Marota" uma autora que muito tem dado de si à blogesfera e que agora nos dá a partilhar as palavras através dos sentimentos e da paixão pela escrita.
Parabéns à Otilia Martelli

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Cândido

Adam tinha um sol chamado Eva. Um dia, esse sol desapareceu. O rapaz, não sendo dotado de um forte instinto de sobrevivência, deitou-se na cama à espera da morte. Chorou, chorou, chorou. Quando a falta de vontade para tudo desapareceu-lhe do corpo, pensou: «Vou matar-me.»

Haviam-se passado dois meses desde que uma rapariga sem sentimentos dissera a um pobre rapaz para desaparecer, que já metia nojo. Sessenta e um dias. Oito semanas. Tempo suficiente para coisas como o sofrimento, a dor, a diversão, o prazer, a solidão, a alegria ou o sexo. Tempo para uma pessoa se esquecer da existência de outra. Não sendo propriamente idiota, Adam estava certo de que Eva não deveria ter perdido muitos minutos a sofrer por ele. Contudo, como no jogo dos sentimentos nem sempre entra a razão, o homem não conseguia parar de pensar que a sua relação com a dona do pecado poderia ser reatada. Sentado no sofá a ler o jornal, a ver televisão, na escola a dar aulas às crianças, nas esplanadas dos cafés a observar os pombos, Adam não conseguia deixar de pensar em Eva.

Uma página do diário do sofredor: Eva, querida Eva, para onde foste? Para que lado do labirinto desapareceste? Preciso de te ver, nem que para isso te faça sofrer, sentir dor. Os meus olhos necessitam de se cruzar com os teus. Não sabes o que é não estar contigo. O não sentir o teu cheiro, a tua voz. O não ouvir a forma como pronunciavas mal certas palavras. Até o modo como me desprezavas me faz falta. Sabes, não me sinto muito apegado à vida. É verdade. Isto de acordar todos os dias irrita-me, incomoda-me. Por vezes, dou por mim a partir candeeiros, a dar pontapés nas portas. Todos os dias penso em ti, minha dama, minha senhorita. Todos os dias choro por estar sozinho, por me ver obrigado a cumprimentar pessoas na rua, por ficar preso no trânsito, por me perder na multidão. Nunca te vejo, Eva. Sabes o que é não te ver? Um rio.


Em pequeno, Adam sonhava com grandes profissões, com grandes ordenados, com grandes mulheres. Não punha a hipótese de vir a sofrer, de não ter trabalho, nem dinheiro. Os pais mimavam-no. Davam-lhe tudo o que pedia. Fizeram mal: não o prepararam para o mal, para as trevas, para o escuro. Não o prepararam para sofrer muito todos os dias. Quando o pai morreu, o rapaz pensou que o mundo lhe cairia em cima. Nunca até aí desconfiara que o ser humano poderia ser dotado de uma grande capacidade de chorar, ao ponto de quase se afogar. Em pequeno, Adam brincava com bonecos de borracha e sonhava com inocentes beijos de mentol. Não conhecia um nome de três letras. Não sabia que nem sempre uma ida implicava um regresso. Olhava para as pétalas das flores e suspirava, porque tinha a certeza de que o futuro lhe reservava momentos perfeitos.

Sessenta e um dias após ter sido abandonado pela princesa dos seus sonhos, Adam pegou numa faca e cortou os pulsos.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Yasmin dos Anjos é uma das vencedoras do Concurso Internacional de Poesia da ABPEIS - BRASIL

Yasmin dos Anjos, jovem poetisa portuguesa, viu a sua poesia ser seleccionada no Concurso Internacional de Poesia, organizado pela ABPEIS - Brasil, pelo que o seu trabalho integrará a programação do Festival Internacional de Poesia, através de um recital com possível teatrealização de 3 dos seus poemas e ainda a publicação de 1 poema  numa colectânea de poesia, a ser editada ainda este ano no Brasil pela ABPEIS.

 
Luis Pinto
Comercial
comercial.yasmindosanjos@gmail.com

Mais informação sobre a autora em:
http://nasasasdoamor.blogspot.com/

terça-feira, 3 de junho de 2008

ÊXTASE






hoje
fiz-me
poeta

e

acordei
na varanda


*
___________

(finalmente
vejo sol)
.
1 junho 2008



domingo, 1 de junho de 2008

Era uma bruxa moderna que só voava com vassoura quando tinha de fazer viagens mais longas, para evitar as restrições na bagagem de mão impostas pelas companhias de aviação. Seria extremamente desagradável se não a deixassem embarcar com as suas poções e era arriscado despachá-las como bagagem de porão - tinha sempre receio que chegassem a destinos diferentes.
Já para as distâncias mais curtas preferia o seu Smart. Estacionava-o em qualquer espacinho e tinha ar condicionado.

a caminhada

Que são palavras sem dor?
A limitada emoção de ver teu novo cognome no ecrã
não se compara
ao ritmo bulímico da aceitação
deste corpo,
frágil e refeito em momentos
resistente mas cicatrizado de simbolismos,
tão perdido a tentar libertar um desejo
que possa ser seu, um objectivo
assumido.

Foram olhares que não conseguiu retribuir,
os únicos
que poderiam deslizar pela lama das formas
enregeladas mas moldáveis,
prevalecendo uno com som puro e afinado
como pardais ao amanhecer,
jovens de braços soltos
do ninho para as crostas até ao desalento.
Somos meras amoras
de tristeza banal fraca demais
para se suster sozinha
na mentira que é a nossa vida.

Sim minha senhora
quero e uso a educação para criar contraste,
num fugaz relato de veias com sangue
sem perseverança para colar as asas e voltar a contestar
a ferida, nas canadianas de angústia
é este o destino
e todos fingem amar e não sabê-lo.
As flores apontam o dedo ao fumo das secreções
pois sabe bem ser falso optimista e
rotular a morte que todos alimentamos.

É vício, ilusão inebriante atropelada de
glamour amolgado nas lajes do tempo,
todos te conhecem e se perdem em ti
ou ficam ociosas crianças no hábito de
corda ao pescoço e telecomando à mão,
afogados nos lençóis escorregadios da espera
de ver, um dia, a face idílica da epidemia
sussurando o bilhete da passagem proscrita.
Sei da condição, sinto-a a provocar-me
para a partir em pedacitos miseráveis quando assim fôr
a última forma de expressão
possível.

in foto-síntese
2003

o princípio do amor




também publicado no Texto-Al