terça-feira, 27 de maio de 2008

Gavetas vazias

De nada adianta procurares o teu homem nas gavetas com meias ou nos copos cheios de gordura: não o encontrarás. Repara que este «não encontrarás» não se aplica apenas ao dia de hoje ou de amanhã. Não voltarás a ver o teu marido. Tens noção do que isso quer dizer? Não voltar a pôr os olhos numa pessoa com a qual se costuma partilhar o tempo e o espaço. Não mais sentir a carne dentro da carne. Passar o resto dos tempos a contemplar fotografias. Tens noção do impacto que pode ter uma simples frase? Não voltarás a estar com o teu marido. Ele desapareceu. Esta é uma palavra errada. O teu marido não desapareceu. Morreu. Como explicar uma morte? Com uma faca. Lembras-te do momento em que ele te disse que ia passear o cão pelas ruas da cidade? Lembras-te? Certamente que sim. Cinco minutos depois de ter pegado o cão pela coleira e de se ter posto na rua, foi interpelado por um sujeito sujo, com cara de vilão, que o assaltou, que o esmurrou, que lhe espetou uma faca na barriga, que o fez esvair-se em sangue. Sabes receber um murro no nariz? Não deve ser como cantar ou ouvir música, deve ser bem mais doloroso. Conheces a sensação de levar uma facada no estômago? Sabes descrever o sabor do sangue na boca? Não procures o teu homem nos cantos escuros da casa: ele não é um fantasma. Poderia ser, reconheça-se. Caminhava como se tivesse asas nos ombros. Os seus gritos eram murmúrios. Claro que te recordas de tudo isto. Eras uma boa esposa.

O tempo passa depressa. Na tua cabeça, foi ontem que te casaste com um príncipe encantado, que te vestiste de noiva e que choraste de alegria por sentires que eras feliz. Nem toda a gente se consegue aperceber de que é feliz, no entanto, naquele dia, tu conseguiste. E foste conseguindo ao longo de vários anos. Bastava que o homem que amavas te beijasse nos lábios para que te derretesses, para que chegasses à conclusão de que, para ser feliz, uma mulher apenas precisava de palavras bonitas e de cafés na cama. Isto foi ontem. A realidade mudou, deixou cair os teus momentos de alegria para dentro de uma caixa de papelão que se guarda na cave. O homem de todos os teus dias morreu. Percebe isto: morreu. Daqui a pouco, um polícia bater-te-á à porta, dizendo que tem péssimas notícias para ti, que fulano tal foi visto morto numa ruela perigosa. Chorarás. Impossível não deixar cair um rio quando se é roubado pela morte. Depois, irás reconhecer o corpo. Durante o caminho, manterás uma pequena esperança de ter havido um engano. «Ele não morreu.» Quando deres de caras com o corpo, verás que aquilo já não é o teu marido, o homem que representava tudo para ti, a tua vida, os teus dias, o teu tempo, o teu espaço. Verás que aquilo, sim, aquilo, já não é um corpo: é uma barriga aberta, um pedaço de víscera no chão, uma boca aberta, uma cara pálida. Um pedaço de lixo.

00:04

0 Comments: