quarta-feira, 19 de março de 2008

À luz de Delft

O que vou contar começou na semana a seguir a um Natal, ao chegar a casa aí pelas cinco da tarde. Depois de me pôr à vontade, fui lanchar. Três fatias de pão com compota de ginja e um copo de leite morno. Pus tudo num tabuleiro e fui comer para a sala, enquanto via uma gravação do Dr. House.

Foi já no fim do lanche que o vi: - o carteiro de Pablo Neruda, como eu me lembrava dele no filme, estava mesmo atrás da mulher que lê uma carta junto a uma janela aberta, na reprodução pintada de Vermeer que tenho por cima da escrivaninha. Primeiro, fiquei muito parado sem saber bem o que pensar. Depois, observei a compota e cheirei o leite – pareceram-me em bom estado!
Levantei-me e mirei-o de perto. Estava com aquele ar ingénuo e satisfeito de quem finalmente sabe o que são metáforas. E estava bem implantado na camada cromática, como se tivesse sido pintado ao mesmo tempo que a mulher. Esquecendo o anacronismo de vestuário, não ficava mal de todo no quadro. Aparentemente, tinha sido ele que tinha trazido a carta à jovem holandesa de Vermeer.
«Bem», pensei, «é melhor não dizer nada a ninguém, sem dormir sobre o assunto». E foi isso que fiz no sofá. A meio do CSI.

Quando acordei, a primeira coisa que fiz foi olhar para o quadro. O carteiro já lá não estava. Fiquei aborrecido. Já começara a pôr a hipótese de mostrar o fenómeno aos amigos. Logo a seguir, fiquei preocupado. O que quer que tivesse perturbado a minha percepção devia estar em mim e podia ser um grave problema de saúde.
Resolvi fazer umas pesquisas na Net sobre alterações de percepção. Um site francês dizia que níveis elevados de açúcar no sangue podem provocar alucinações. Nessa noite, dormi mal.

No dia seguinte via-se uma alcoviteira de Murillo do lado de fora da janela a falar com a mulher da carta. E nos outros dias sucederam-se outras imagens de menor dimensão: um jarrão azul com flores de Cézanne sobre a mesa, um gato de Manet sobre a carpete, umas mãos de Rodin na janela. Eu sei lá!

Isto, apesar de eu ter começado a conter-me nas sobremesas e a lanchar só tostas secas e água.

Entretanto fui ao médico. Impôs-me uma dieta rigorosa sem açúcares e receitou-me uns comprimidos de lítio. Diz que devo ter uma predisposição genética visionária que foi potenciada pelos excessos da quadra natalícia. Para eliminar todos os factores desencadeantes, aconselhou-me ainda a parar com quaisquer leituras sobre arte durante uns tempos.
O que é certo é que passadas umas semanas deixei de ver imagens estranhas a perturbar o recolhimento da holandesa de Vermeer a ler a sua carta.

Uns três meses depois, quando já pensava que o meu problema estava sanado, certa manhã dei pela falta da própria mulher do quadro. Calculam como fiquei! O coração acelerou-se e quase entrei em pânico. Se antes era açúcar, o que seria agora?!
Telefonei logo para o meu médico que também se mostrou alarmado e me disse que eu, provavelmente, devia ter abusado da dieta. Mandou-me tomar logo um pacote de açúcar dissolvido em água e que fosse ao consultório dele no dia seguinte. Tomei o que ele mandou e fiquei pensativo a olhar para o quadro deserto. Que intrigante, esta situação!
Então reparei nuns pequenos vultos na praça que se vê através da janela do quadro e que antes não estavam lá. Eram-me familiares. Apesar de pequenos, não deixavam margem para dúvidas: eram as silhuetas da holandesa desaparecida, de braço dado com o carteiro de Pablo Neruda!

No dia seguinte já não fui ao médico. Nunca mais lá voltei. Percebi que o Amor é mais forte que quaisquer dietas ou comprimidos. E encontra sempre o seu caminho.


(Foto do quadro por alturas da aparição do gato de Manet)

[Publicado noutra versão no blogue Universos Assimétricos]

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