domingo, 9 de dezembro de 2007

Entrevista a Gonçalo M. Tavares









Gonçalo M. Tavares ao Círculo de Leitores








«Jerusalém» Canto Interrompido - O Incomodar -


Quase não se nota, quase nos podemos enganar. Mas há um fio, um transparente e inquebrável fiozinho que liga todas as palavras dos seus livros. Falará de loucos, de jogos, de inversões, de mundos ao contrário, de contrariadas solidões, de insólitos rostos, de estranhos lugares com pessoas tão estranhas como cada um de nós. O mago é Gonçalo M. Tavares. Talvez não goste do nome. A sua arte talha-se afinal numa constante leitura dos outros, só depois numa descoberta da sua própria escrita. Nasceu em Angola, tem 34 anos de idade e começou por editar um livro de poesia seguindo-se o ensaio, a ficção, o teatro. Com «O Senhor Valéry» obteve o Prémio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do jornal «Expresso», e o Prémio Revelação de Poesia da APE com «Investigações. Novalis». Em 2004 é distinguido com o Prémio LER/millennium bcp, em 2005 com o Prémio Literário José Saramago. «Jerusalém» inclui-se no que designa de Livros pretos, a tocarem o desencanto.



Círculo de Leitores online - Prefere um leitor (dos seus livros) satisfeito ou perplexo?


Gonçalo M. Tavares - Talvez o prefira, no final, satisfeito por estar perplexo. Alguém ficar intrigado é, julgo eu, um ganho. Há uma satisfação diferente quando se entende tudo por completo ou quando se entende em parte, e a parte que falta provoca mudanças, curiosidade, etc. Eu, pessoalmente, como leitor não gosto de ler aquilo que já sei ou estou à espera.


CLonline - A pergunta anterior não é obviamente inocente. Sente-se em jogo com o leitor ou consigo mesmo? Há uma notória inversão de lógicas neste livro, e nos editados anteriormente. Essa construção é algo com que se diverte e a que acedemos de fora, ou em que nos quer incluir?


GMT - Considero que estes três romances, «Um Homem: Klaus Klump», «A Máquina de Joseph Walser», e agora o «Jerusalém» são livros emocionais e portanto que incluem o leitor no seu mundo. Não há nada de abstracto em «Jerusalém», a violência entre pessoas e os laços amorosos e familiares existem em todo o lado. Estamos todos no mesmo barco: temos medo e se necessário somos agressivos.

CLonline - Permita-me a insistência no termo “jogo”. O lugar que conta, as personagens que cria têm vida própria ou são peças que move a seu bel-prazer? E, a movê-las, pretende afirmar o quê com este livro?


GMT - Quando escrevo um livro nunca sei o que vou fazer, o que vai sair. Começo a escrever sem saber nada: sem saber se há personagens, quantas são, sem saber o que vai acontecer, desconhecendo factos, episódios. Escrevo, apenas. Nunca escrevo com um plano. Pode parecer estranho para quem lê, mas é mesmo assim: a cada linha do «Jerusalém» não sabia o que iria acontecer a seguir. Portanto, as personagens não as movo ao meu bel-prazer. É como se nem sequer visse as personagens, elas aparecem sem eu as convidar.


CLonline - Que lugar habitam as personagens? Um lugar paralelo ao nosso? Subterrâneo? Estrangeiro?


GMT - Aparecem num lugar paralelo ao nosso. Não é num lugar estrangeiro, porque não há nenhum lugar estrangeiro ao medo, à agressividade, à loucura, à ligação entre pais e filhos. Pertencemos todos ao mesmo país.

CLonline - Theodor afirma a procura de Deus como um imperativo de sanidade: «...um homem que não procure Deus é louco. E um louco deve ser tratado». Porquê o ancorar da razão em Deus?


GMT - A ideia mais antiga, que o ser racional por excelência, que é o Homem, vai espalhando pelo mundo é a ideia de Deus. A ideia de Deus é uma consequência de um pensamento racional absoluto. Podem existir, mas não se conhecem deuses dos cães ou dos mosquitos. A razão e Deus estão muito ligados. Theodor, o médico, também sente isso.


CLonline - Theodor é um cientista ou um crente?


GMT - Julgo que é as duas coisas. Theodor é médico e os médicos contactam com um dos limites essenciais do humano: o limite da saúde. Este contacto com os limites do corpo humano é sempre muito forte, não será por acaso que muitos dos que têm profissões que trabalham com os limites humanos se aproximam de crenças mais ou menos explícitas.
Acaso . Destino


CLonline - Há uma sensação de ameaça ao longo do livro. Como se tudo pudesse acontecer - e como se tudo o que acontece não tivesse necessariamente um sentido. Concorda, ou é aparente o acaso?


GMT - Todos os acontecimentos do livro são, ao mesmo tempo, um acaso, e como que um destino. O livro talvez não pudesse terminar de outra forma.CLonline - A cura, dirá Gomperz, passaria pelo esquecer de um trajecto. A loucura abre ou fecha portas? GMT - A interpretação romântica da loucura, associando-a aos actos amorosos ou criativos, não me é muito agradável. Estar apaixonado ou ser criativo nada tem a ver com a loucura pesada, dura, que é algo que se deve respeitar pois relaciona-se acima de tudo com o sofrimento humano e individual. A loucura é uma coisa má e negra. Os textos de Artaud, por exemplo, são excelentes. A loucura de Artaud foi certamente terrível e negra.CLonline - Quem não é louco neste livro?GMT - A prostituta, o médico, quase todas as personagens são como nós. A mesma extraordinária porcaria saudável.




Escrever . Pressentir



CLonline - Fez algum tipo de pesquisa para este livro?


GMT - O instinto de pesquisa é este: quero tentar perceber. Começamos a pesquisar quando não sabemos e nunca se pára de pesquisar, porque nunca se sabe, sobre um determinado assunto, tudo. Para mim a escrita é um estado de investigação, e o que me interessa essencialmente é investigar os comportamentos humanos.CLonline - Permita-me voltar um pouco atrás. Como surgiu a escrita de «Jerusalém»? Enviou o original a concurso mas inclui este inédito no subtítulo«Livros pretos». Porquê esta designação? GMT - O romance «Jerusalém» pertence aos livros pretos, e tem uma ligação clara com os romances «Um Homem: Klaus Klump» «A Máquina de Joseph Walser», ambos editados na Caminho. São livros pretos, no sentido de uma certa dureza, e de um certo desencanto. Desencanto é a interrupção do canto, é uma coisa que incomoda.


CLonline - Para além da ordem interna de cada um dos livros, designa-os“Cadernos”, mais especificamente, «Cadernos de Gonçalo M. Tavares». O que liga estes cadernos?


GMT - É evidente que os Cadernos têm ligação entre si. São escritos pela mesma pessoa. Claro que, por vezes, há uma ideia de que uma pessoa é só uma pessoa. Mas não, todos somos uma quantidade de coisas diferentes, como toda a gente sabe e sente. Por vezes no mesmo dia, em menos de dez ou doze horas sinto-me completamente angustiado e farto de uma certa existência estúpida que toda a gente tem, e passado algumas horas posso estar genuinamente divertido com algo dentro da minha cabeça. O mundo tem vários tons e devemos respeitar isso. Em relação aos cadernos, e tentando organizar mentalmente os diferentes livros, vejo que há livros que têm objectivos diferentes. Com certos livros tento interferir na linguagem, com outros tento interferir na literatura e com outros ainda (onde julgo se inclui o «Jerusalém») tento interferir na existência das pessoas ou pelo menos na forma de se pensar sobre certos acontecimentos. Há livros que os vejo como investigações, livros que muitas vezes são fundamentais para outro tipo de livros mais concretos como os romances. No entanto, apesar de colocar no meu trajecto principal alguns livros, como os romances, livros de estrutura mais clássica, não quero deixar nunca de escrever livros que procuram caminhos diferentes na literatura, fora de qualquer género literário assente. A classificação de géneros literários é uma prisão e uma predeterminação do exterior que quem escreve não deve aceitar. Se do escritor saiu um romance, tudo bem. Se saírem naturalmente contos, tudo bem. Mas se sair qualquer outra coisa, que não é colocável em nenhum género literário, tudo bem à mesma, e muito bem mesmo, desde que seja algo que ajude a investigação sobre a linguagem e sobre as ideias.


CLonline - Gostaria de saber um pouco mais sobre o seu método de escrita.


GMT - Não há nenhuma elaboração mental prévia. As personagens e os acontecimentos vão surgindo à medida que escrevo. Por vezes, a meio, há pressentimentos sobre o que poderá vir a acontecer, mas nunca sei exactamente o que vai suceder. A folha está em branco, começo a escrever. No livro «Biblioteca», publicado recentemente relembrei uma brincadeira de Lewis Carroll que de certa maneira se ajusta à descrição do meu método de escrita: começo a escrever no início, continuo a escrever, e quando chega ao fim, paro. É este o meu método.


CLonline - Este tipo de pergunta - que tenta desmontar a sua escrita -alicia-o a mentir?


GMT - Não. Mas eu próprio não consigo desmontar a minha escrita, precisamente pelo que disse antes: quando escrevo pela primeira vez algo não sei como o faço. Não domino esta primeira parte. Começo a escrever, simplesmente. A segunda parte, sim, a de revisão, a de vigilância sobre o que foi escrito, aí domino, sei como faço. Mas o essencial já está antes feito, e isso não sei desmontar. Apenas rezo para continuar a fazer, mesmo que nunca venha a saber como faço.


CLonline - Como e quando começou a escrever?


GMT - Escrevi muito à mão, em cadernos, durante muitos anos. Comecei cedo a ler e a escrever, não consigo separar a leitura da escrita. A certa altura percebi que escrevia quase instintivamente e que precisava disso para me sentir bem. Quando não escrevia ou não escrevo, fico irritadíssimo. Depois estive muitos anos a ler e a escrever obsessivamente. E no meu cantinho. Só comecei a publicar aos 31 anos. Como às vezes brinco: foi para desocupar metros quadrados da minha casa.


CLonline - É isso que se considera: um escritor?


GMT - Escrever é um acto natural, quase instintivo. Escrevo mais naturalmente do que falo. Não tenho necessidade de falar, tenho necessidade de escrever. Necessidade e instinto são palavras que não têm a ver com ofícios, relacionam-se sim com o organismo. Escrever não é um ofício, apesar de requerer uma certa disciplina.


CLonline - Novos projectos?


GMT - Há muita coisa já feita ainda para sair. E estou a fazer outras coisas. Sairão provavelmente alguns livros ainda este ano. Estão também a começar a acontecer várias traduções de livros meus para França, Espanha, Brasil, Índia, talvez Itália. O que é óptimo.


CLonline - Uma última pergunta. É Mylia quem se refere a Jerusalém. Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que seque a minha mão direita. Que Jerusalém é esta?


GMT - Eu só escrevi o livro. Não sei mais nada.

1 Comment:

Manuel Marques said...

Posso opinar acerca de Jerusalém... é um livro fabuloso, estranho, que se entranha e apetece devorar até nada mais restar! Partilho da opinião de José Saramago... se quiserem saber qual é ver o livro que na contra-capa está lá escrito! / Fabulástico, como diria o biólogo de letras abensonhadas... Mia Couto!!!