sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Canção de saída

O despertador começa a tocar. Dez da manhã. Bem que poderiam ser duas ou três da tarde. Não há nada para fazer, ninguém com quem contactar. Os amigos não estão, nunca estiveram, foram uma invenção. Não se pode imaginar dois cães enraivecidos a manterem laços sem que saia um sorriso. Uma curva que se põe nos lábios. A família não está, nunca esteve. Outra invenção. O pai, a mãe, a avó, a tia, o primo, tudo invenções. Ninguém existe realmente. O despertador toca e uma pessoa vê-se obrigada a sair da cama porque perdeu o sono e não quer ficar debaixo dos lençóis a ter pensamentos tristes. Mas fora da cama também não há nada. O homem coloca os pés no chão, arrepia-se com o gelo outonal e levanta-se para um banho de água fria. À inglesa. Para enrijar. Enrijar, é assim que falam os homens grandes. Ganhar músculo, tesão, levá-las para a cama e fazer-lhes filhos. À homem. Mas os homens não são rijos. Tomam banho de água fria por não terem dinheiro para uma botija de gás. Um objecto para custar meia dúzia de tostões. Onde está o rijo? Passar os dias a escrever, a ler, a dormir, a iludir-se com o futuro que nunca chega a ser futuro, porque é cada vez mais passado. Isso é ser rijo? E abandonar um filho, é ser rijo? De forma breve, quase meteórica, o homem toma o seu banho gelado (outra solução seria não o tomar e ir para a rua todos os dias com um cheiro a novilho) e veste uma camisa surrada na gola. Olha pela janela: a humanidade é imensa e infeliz. O que fazer? Ir procurar trabalho? Dormir? Deixar o mundo correr e mandar o amanhã às urtigas? Pôr perfume no pescoço. O homem põe perfume e penteia-se para não sair de casa. Fica todo cheiroso para nada, ou melhor, para abrir um livro e o começar a ler. Talvez a loucura inclua gente que quer fazer amor com papel nas suas instalações. A namorada? Nunca existiu, tudo ficções. A mulher? Uma ficção ainda maior. O homem lê trinta páginas de um livro de poemas, pisca os olhos – primeiro o esquerdo, depois o direito – para perceber se ainda vê do mesmo modo que via antes de ter começado a ler. A solidão dá para tanta coisa. Às vezes, dá para sofrer, para sentir uma dor tão grande, mas tão grande, que se quer morrer. Um homem levanta-se e deita-se e não faz nada e não há nada e nada existe porque nada faz sentir felicidade e isso magoa, magoa tanto, tanto, tanto, que se deseja morrer.

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