Um escritor de fracos recursos começou a escrever: O que é a justiça? Ficar com as duas pernas cravejadas de balas para que nenhuma se fique a rir da outra. Receber um murro em cada um dos olhos para que nenhum permaneça esbelto. O que é justo? Ver o assassino que nos matou o filho apodrecer na cadeia. Sentir que o filho assassinado não vai voltar à vida. Contradição. Existe a justiça, sem dúvida. Várias justiças. Mas nenhuma delas consegue existir sem a contradição. Nenhuma alegria é eterna: passamos anos a sonhar com um prémio e, quando o recebemos, ficamos com uma ligeira sensação de desilusão. Nenhuma justiça é total: um mata, o outro morre. É sempre assim. Não existe a balança, o medir de diferentes pesos. Não existe o equilíbrio. A realidade é feita de pequenos e de grandes sofrimentos. De pequenas e de grandes dores. Respirar é habitar um mundo que pede ao animal para que escolha entre o herpes no lábio e a apendicite, entre a rótula amachucada e o punhal no coração.
Quando acabou de escrever, o homem, que dava pelo nome de Adam, foi ao quarto espreitar a sua princesa. Eva. Dormia com um sorriso. O escritor não a quis incomodar. Foi fazer um café à cozinha, acendeu um cigarro, coçou os testículos. Voltou para o computador mas não lhe saíram mais palavras dos dedos. Quem escreve não consegue provar, como o carpinteiro, que o seu trabalho é honesto e que merece ser pago. Uma dúzia de linhas por dia não dá para pagar o pão da mercearia. Naquele momento, o escritor não tinha mais nada a afirmar. Por esse motivo, ligou-se à Internet e foi ver pornografia. Passados trinta minutos, desligou a máquina e levantou-se com o intuito de perturbar o sono à sua nobre dama. Eva, a que dormia de forma sorridente, foi acordada com um pénis dentro de si. De início sentiu-se um pouco violentada. Contudo, à medida que o pénis do escritor aquecia, ela própria ia ficando excitada. Até que chegou a ejaculação precoce. A pornografia estraga a performance masculina.
Acendeu um cigarro.
«Dormiste bem?», perguntou.
«Como uma fada.»
«O teu sorriso excitou-me.»
«Nem sabia que olhavas para mim», disse ela.
Os artistas são egoístas, diz-se. Adam tinha consciência de que o seu cérebro só produzia ideias que envolvessem a sua própria pessoa. Mesmo assim, decidiu mentir.
«Estou sempre a olhar para ti, querida.»
«E as outras?»
«Quem?»
O mesmo de sempre. As mulheres, as traições, os textos falhados, as relações frustradas, o mau sexo.
Eva sabia que era amada pelo seu homem, mas de forma pouco normal. Ele passava os dias a escrever no computador, tentava publicar alguns artigos em revistas, publicava um romance de tempos a tempos, e, nos intervalos, arranjava tempo para a beijar, para lhe dizer palavras bonitas. Mas pouco. Na maior parte do tempo, Eva estava sozinha a pensar no que poderia fazer dos seus sonhos, nas vidas que poderia ter, no tempo que estava por vir. Sofria por ele. Sabia que existiam outras mulheres, outras amigas.
«O que vais fazer hoje?», perguntou ela.
«Vou escrever.»
«E amanhã?»
«Vou escrever.»
«E nos outros dias todos?»
«Vou escrever.»
«E daqui a um milhão de dias?»
«Vou escrever.»
«Nesse caso, adeus. Vou fazer as malas.»
«Porquê?», perguntou ele.
«Porque és um mau escritor que deveria dar mais importância às partes boas da vida.»
«Quais são essas partes boas?»
«Eu, por exemplo.»
Eva não se iria embora, não ganharia nunca coragem para abandonar o seu homem. Não que fosse uma pessoa fraca por natureza, apenas padecia da doença do amor. Ele também a amava, mas isso não chegava para se comportar de forma diferente com ela.
Um fragmento dos cadernos do escritor falhado: O desprezo é um sujeito fornicar com uma mulher que dorme.
Um pensamento de Eva: Embora preferisse morrer do que me separar dele, não aguento mais; quero desaparecer, afogar-me em alto mar, começar tudo outra vez.
«Dá-me um beijo.»
«E um abraço.»
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