quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A decisão


No próximo ano é que é. Começo logo no dia 1. Não fumo mais. Ou bem que tenho vontade própria ou não. Estou farta de que me chamem a atenção para não fumar aqui, nem ali, nem em lado nenhum. Sinto-me discriminada, excluída, insultada. E os que já fumaram são os mais fundamentalistas. Não sei que raio de mecanismo psicológico é que os afecta. Será porque antes se consideravam perseguidos como eu me sinto agora? Será que eu também vou passar a maçar os outros por estarem a fumar num lugar onde, eventualmente, não se deve fumar?

Há pessoas que são torcidas e maldosas. Lembras-te, Isabel, quando estavas a jantar sozinha no balcão corrido daquele snack-bar? E aquela velha que entrou – tica, tica, tica, tica – naquele passinho miudinho? Tinha as mesas quase todas vazias. E ao balcão só estavas tu e mais um casal. Pois a malvada velha atravessou o estabelecimento todo e veio sentar-se ao teu lado. E apenas se sentou, virou-se para ti, lembras-te?, e vai de dizer que ali não se podia fumar e que não tinha que estar a levar com o fumo do teu cigarro, e frito e cozido. Não há paciência!
Este ano tem que ser Isabel. Custe o que custar. Eu sei que é difícil, sei-o bem. Há três anos que andas nisto a tentar fumar pouco e não consegues. Fizeste enormes progressos, reconheço, mas falta o rabo que é o mais difícil de esfolar. Começaste por vinte minutos. É pouquíssimo. Mas, antes de tentares fumar pouco, havia situações em que apagavas um e acendias outro. E, se estavas muito concentrada ao computador, chegavas a acender um, com outro ainda a arder no cinzeiro. Durante uns segundos meditavas nisso. Mas adiavas uma decisão que iria mexer contigo.
Há uns cinco anos chegaste a estar três meses sem fumar. Lembras-te como de repente voltaste a sentir os sabores da comida e da bebida, intensos, e os cheiros, tantos e tão ricos, e de que já te tinhas esquecido? E te apercebeste de como cheiravam as tuas roupas? Já para não falar da centena de euros que de repente te sobrava e que orgulhosamente gastaste em mimos para ti, que bem merecias! Mas depois, as contrariedades da vida… És muito sensível à tristeza e à frustração. É nessa altura que precisas de um cigarro. Precisar mesmo. Há pessoas – já conversaste com muita gente sobre este assunto – cujos momentos fatais são aqueles em que se sentem bem, aconchegados no calor do grupo de amigos. Beberam um café, a conversa está boa… Para culminar – um cigarro. E então se meter álcool… Quem pode aguentar um long drink num ambiente descontraído, rindo com os amigos, sem puxar por um cigarro?
Começaste por vinte minutos. Punhas o telemóvel para tocar de vinte em vinte minutos. Era fácil. A cada semana aumentavas cinco minutos. Em dois meses chegaste a intervalos de uma hora. Aí, já custava. Mas foste forte e disciplinada. Às vezes parecia que nunca mais passava o tempo. Sacavas amiúde do telemóvel para consultar as horas. Finalmente, chegava o momento de fumar. E relaxar. E andaste com este ritmo uns dois anos. Já só fumavas menos de um maço por dia. Já era melhor. Mas ainda tinhas expectoração negra de manhã. E catarro. E as pontas dos dedos amarelas. E ainda sentias que te cansavas mais do que o devido, se tinhas que subir umas escadas mais depressa. Começaste a sentir menos respeito por ti própria. Que raio, não teres força de vontade para fumar ainda menos! Então deste a arrancada final, pensavas tu. Voltaste a aumentar o intervalo. Em cada semana aumentavas um quarto de hora. Em pouco tempo chegaste às três horas de intervalo. Voltaste a sentir-te orgulhosa e auto-confiante. Já só fumavas uns seis cigarros por dia. O pior era o fim do dia. Era difícil ires deitar-te sem fumar um último cigarro. E não ias esperar que chegasse a hora. Quebravas ali, excepcionalmente, o esquema. Fumavas e relaxavas, e ficavas um pouco a saborear o momento. E, de repente, tinha passado mais uma hora… e não era fácil adormecer sem fumar um último cigarro… E neste ciclo vicioso fumavas três ou quatro.
Mas agora cansaste-te. Agora não vais vacilar. Arquitectaste o teu plano, meticulosamente, sem dizer nada a ninguém. Estás decidida. A 31 de Dezembro fumas o último cigarro. E nunca mais lhe vais pegar. Sabes bem que nunca estarás curada. Serás sempre uma convalescente, uma viciada em fase de não-consumo. Sabes que, se deres uma «passa», podes voltar a fumar tanto ou mais que fumavas antes. Sabes que o teu corpo, as tuas células em carência, vão inventar todo o tipo de argumentação para te levarem de novo ao consumo. Não vais aceitar nenhuma justificação. Não serias tu a falar mas a carência. Agora, estás bem alerta. Pensaste em tudo já há quinze dias.

Mas hoje, noite de Natal, o meu pai ofereceu-me uma cigarreira em baquelite bordeaux, muito bonita, a minha mãe uma boquilha equipada com um filtro especial para reduzir a nicotina, o meu irmão deu-me um cinzeiro em porcelana, e o meu namorado – até ele, como é possível? – deu-me aquele isqueiro Ronson em ouro que uma vez tinha cobiçado!

[A publicar no blogue Universos Assimétricos]

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