segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Preto

Nove da manhã. Mais um dia com muita chuva a cair dos céus. O sol não aparece. Tem andado escondido, como os ladrões. E o calor? Há quanto tempo anda tudo vestido com roupas e mais roupas? Depois do primeiro mês, deixaram todos de contar os dias. As manhãs já não aparecem como antigamente. Agora, em vez dos passarinhos que cantam e dos automóveis que apitam, temos o silêncio, um atordoador silêncio. Em vez da claridade, temos escuridão. Em vez do aconchego, do quentinho, temos frio, gelo. É aterrador saber que o mundo mudou desta maneira. Acende-se um fósforo no meio do preto e nada aparece, a não ser uma monstruosa boca. A humanidade deve ter sido comida por uma baleia.

O problema de se pensar no passado é que, de uma forma geral, ele nos sabe bem. Melhor do que o presente. Debruçando-se sobre o parapeito da janela do seu quarto, um pensador muito importante reúne informações, numa tentativa de perceber o que se poderá estar a passar com o planeta. Talvez uma catástrofe ou o fim do mundo. Os telejornais dizem de tudo. Por vezes, fala-se de um meteorito do tamanho do universo que virá para esmagar este pequeno jardim. Noutras ocasiões, diz-se que foram os governos mais poderosos do mundo que fizeram de propósito para acabar com os mais fracos. A imaginação dá para tudo. Até para um indivíduo se atirar de uma ponte ou de um prédio. Dentro do seu espaço habitado por fantasmas, o pensador tem dificuldades em encontrar soluções para o futuro. Ainda se fosse mágico ou ilusionista. Agora, filósofo? Ler livros para quê?

A escuridão. Não há vida para homens que não se consigam mover no escuro. Se tivéssemos todos nascido cegos, o preto dos céus não constituiria problema nenhum. Cada um pegaria na sua bengalinha e, com um certo jeito, até leões conseguiríamos matar. Contudo, não nascemos cegos. Antes valia. Não nos andaríamos a enganar durante tanto tempo, pensando que vemos quando, no fundo, somos burros que nem uma porta.

Nove da manhã, um pobre coitado levanta-se da cama porque os seus sonhos lhe disseram que o dia iria clarear. Engana-se. Mal abre o olho esquerdo, o homem apercebe-se de que nenhuma luz aparecerá à sua frente. Dá dois murros na cama de madeira e afunda-se no colchão.

«Por que me fazes isto, Deus?», pergunta ao divino. Este não lhe responde.

Revolta-se mais. Desata a distribuir pontapés na mobília da casa, como se tudo o que os seus olhos vissem fossem bolas de futebol. Na verdade, os olhos do homem não vêem nada. Estão fisicamente dotados de visão. As suas pequenas retinas estão praticamente por estrear. No entanto, não vêem. Por cima das nuvens, não há sol nem lua. Tanto faz que seja dia ou que seja noite. Não se vê nada. Por conseguinte, tudo o que o homem destrói com os seus pontapés poderia ficar intacto. Ninguém colocará os olhos na destruição. A ideia de impotência ainda incomoda mais o homem. Muito tempo depois, e já cansado, o homem coloca-se de joelhos a olhar para o tecto.

«Que fazer?», sussurra.

Ainda de joelhos, o homem junta as mãos e começa a rezar. Mas nada muda. Nunca nada mudará.

«Isto que te aconteceu será eterno», ouve.

Será para sempre. Serás cego conseguindo ver. O homem está possuído por um grande desespero. Prefere morrer a continuar assim. Mas depois há o amor. O que será da mulher? E as filhas? O que comerão duas crianças sem pai? Acalma-te, pobre coitado. Acredita que amanhã tudo se resolverá. Acredita que a religião salvará a Terra. Acredita na esperança.

Tarde de mais. Com um tiro de revólver, o homem tornou-se igual a ele próprio, isto é, um zero.

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