terça-feira, 4 de dezembro de 2007

O rapaz com saudades

Depois de olhar para a fotografia da mulher, um homem começa a escrever: Dizias que precisavas de conversar quando, na verdade, querias fechar a boca e olhar para mim com olhos de choro. Conhecia-te bem demais. Sabia que palavras usar para te ofender. Se te falasse com alguma violência, não muita, explodirias numa tempestade de proporções bíblicas. Se deixasse sair uma palavra ofensiva, que tivesse como objectivo ofender-te, não ripostavas. Baixarias a cabeça para o chão e, durante muito tempo, nenhuma palavra te sairia dos lábios. Mas isso era no tempo em que me tratavas por paixão e eu te chamava de bebé. Já não te conheço. Se me pedissem para descrever o teu cheiro, o teu perfume, não saberia. Se me obrigassem a desenhar a tua cara num papel, erraria os traços. Ficarias feia. Feia. Como eras bela. O que será feito de ti? Nunca mais te vi. Quem adivinharia que te ofenderias por te chamar de puta quando te apanhei na cama com o meu primo? Nem deveria sentir remorsos. Mas sinto. A verdade é que me arrependo por te chamar todos os nomes naquela tarde. Não é por trair que uma mulher cai do seu pedestal. Olha para ti: tratei-te como uma pêga, sumiste-me da vista. Nem tive tempo para puxar pelo teu afecto por mim ou, vá lá, pela tua compaixão. Sou um pobre coitado. Por nunca ter ido para a cama com uma das tuas amigas, com uma das tuas primas, com a tua irmã, sou um miserável. Já viste o que é chegar a casa e apanhar-te com um pinga-amor? Pior: já viste o que é ver-te a fornicar com um zé-ninguém na minha cama? Homens existem que te chamariam coisas bem piores. Quem sabe se, nas mãos de um qualquer irmão metralha, não levarias com uma mão fechada na testa? Eu nunca te faria tal coisa. Se me traíste, tinhas razões para isso. Mas agora é tarde, não é? Onde andas? Já se passaram doze meses.

Com o pulso dorido, o homem parou de escrever. Começou a olhar para o papel. Nada do que escrevera lhe agradara. Riscou tudo. Fez da folha de papel uma bola. Falhou o cesto do lixo. Voltou a pegar na caneta. Escreveu uma simples frase: sou corno mas tens razão.


também aqui.

3 Comments:

© Piedade Araújo Sol (Pity) said...

MEsmo ficção que é assim que faço a minha analise, é um texto fortissimo, teria ainda muito que desenvolver, mas achei muito boa a maneira como acabou por fechar o referido...

Anónimo said...

Gosto destes contos, Paulo. Amargura e desencanto bem patentes nestas palavras.

Abraço,

Pedro José :)

Anónimo said...

Quando há traição, certamente é porque ou a personalidade da pessoa o exige, ou porque a relação não está bem.
Ninguém merece a traição, mas esta pode ser explicável.
Gostei da força das tuas palavras.
Beijinho