terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Monólogos no abismo

«A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação.»


"Estilo", Herberto Hélder

(no consultório)

Devo ser o intercessor do caos. Aos dédalos por onde erram os náufragos, regidos por leis que não subverto ou domino, conheço-os a todos. Procuram-me. Eles, homens que nunca sabem que fio largaram, que noite ou estrada os viu perder. Eu sou a vigília, e comporto o mistério do abismo e do medo, porque creio neles de fora, louco para a ciência disto. Não há tumulto que eu não anuncie no breu, porque me prendo, lúcido, aos mastros da psique, enquanto nos sorve a voragem. Somos tanto, tão frágeis. Se pedem que os salve, converto-os na luz arrancada dos espelhos, para reaprendizagem dos reflexos. Pedem que os ame, e falo-lhes do Longe e do Tempo, de casas docemente abandonadas ao entardecer, em terras onde nunca nada restará de ninguém. Digo-lhes que todas as histórias do mundo só lhes sucederão a eles, e sentem-se amados no calor dessa herança.

Todas as noites, dirijo preces ao abismo e aos que o torneiam, insones, na vertigem velada. Penso sempre que ninguém se deveria sentar a esta mesa. Nem você, que chega, meiga e trémula, porém sagaz no exercício da procura interior. Nunca a vi antes. Arrisca encontrar-se em títulos de manuais, na estante ao lado, talvez a psiquiatria saiba de si. Posso perguntar-lhe o seu nome, ou esperar por si para o deslindar dos novelos, mas de súbito reconheço-a como filha que poderia ter tido e estremeço, afinal é já uma mulher, coajo-me a abandonar a ideia. Deixe-me descobri-la.

Eu venho do não retorno, onde a palavra se reinventa até ao infinito

Não lhe peço que seja directa. Ensine-me antes o dialecto da abstrusão. Desde que me entreguei a este ofício, não soube diluir o fascínio inicial. Por isso, agora, quando fala, eu devo entender a alquimia da sua voz. Diz-me que a gerou uma metáfora, e que portanto aprendeu a viver no cruzamento ininterrupto de sentidos, e nunca mais se encontrou. Diz-me também que nunca caiu. Relembra uma avó toda debruçada sobre o coração para a alcançar, enquanto você ergue os joelhos ainda latentes do tombo e diz

Avó!, quase caía

Quase caía , quase que amava. Ao Amor, apresentaram-na os poetas, esses cujos cânticos ainda hoje entoam bocas sem nome, poetas eternos de quem não olvidará o nome. Com eles aprendeu a diferença, a nobre diferença entre o ardor dos amantes e o fogo do Amor. Evoca a "arte de não cair", e não sei de que fala. Faíscam-lhe os olhos devotos, pergunto-me se é deus, diz-me que são os arcanjos da beleza. E acrescenta, empedernida ou frágil, "que só queria ter velado a Beleza". Só agora compreendo que ainda é deles que fala, dos poetas. Dir-lhe-ia, se pudesse, que me fascina. Arriscaria talvez tutear-te, permitirás?, filha minha que poderias ser, mas agora humedece-te o olhar langue, antes de dizeres a maior verdade

Nada conheço que não antecipe o fim

Pressinto que sabes demais, como se falasses de outra. Fluida, narras-me a história de um pai que talvez fosse o teu. Inerte, simbólico, eterno, um pai preso ao retrato antigo que terias sido. Tremem-lhe as mãos ao amanhecer e tu condescendes: sabes que o passado o deixa ébrio, por vezes distancia-se muito e temes que o sequem as areias do tempo, encerrando-o nos remotos covis da memória. Então ele imerge outra vez nos retratos, e já o perdeste, terno e comovido em imagens que afinal nem foste. É quando cessas de pedir que as deixe, por ti.

Nada mais digas antes da ires e se disseres, nada mais se recorde. Não há palavra que me queiras, de trilhos conheces os que te trouxeram e os que te vão levar. Poderia indagar a razão pela qual me procuras, e então dirias que no caminho te seguraram as mãos e exortaram, num murmúrio encriptado

Abre a porta

Escolheste a última, a minha, não para pedir o amor ou a salvação, porque não sou aquele em que crês. Sei que a escolheste "para que sonhar doesse menos". E agora só queria que arcanjos descessem sobre nós sua linguagem de luz e de sombra, que este fosse o lugar de cedermos ao fogo e à queda, que houvesse uma casa e um pai e um regresso de lá longe de onde vieste, um dia. Porque eu não sei dizer-te que a palavra, o amor, os poetas, o pai, o firmamento, o abismo, te esperam. Porque eu não sei dizer-te que talvez estejas só.

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