Ultimato à rigidez. Vocabulário incerto. Manhã sucessiva.
Se eu dissesse fechar os olhos. Se sentisse que os olhos se fecham e quando eu pedi para se fecharem sentisse o que teria sentido. Abro os olhos e não mais que meros tempos verbais. Ou não. Lá longe, ou melhor, sentir-Me lá longe, no ainda muito longe, muito para o além longínquo demais infinito, obriga-Me a imaginar.
Caminhava pé após pé seguindo o apoio em apoio até ao passo seguinte. A manhã era clara. Não mais que uma manhã azul, por causa da laranja que lentamente iluminava o imaginário. Não era sede que sentia, mas sim, a falta líquida da frescura. A manhã era clara e com ela o frio que a resumia a singularidade. Sim. Era uma manhã como muitas outras manhãs que sucedem a noite, fria como é normal. Acontecia-Me parar e mesmo assim era o impulso de continuar. Não era o pressuposto de chegar ainda mais longe, não era querer chegar mais além, não era estar longe do ponto de partida. Não houve início. Se sentisse a pergunta, diria que sim. Não tinha razões para negar. Tinha a consciência do estar-Se. Estava somente a andar. Se não sentisse nada, nada diria. Certamente no fim diria não, se não a tivesse imaginado. A resposta obtida, caminhar sem noção da pergunta. Noção de estar perdida. Não. Não imaginava um deserto. Era demasiado complexo para se resumir a um ponto. Queria desenhar no passado o passo que dava em frente… Imaginava-Me na reticência em pausa. É demais. Avançava pois em frente, avançava de mãos dadas no interior, era coração que assim mo dizia. Não tinha medo, porque nada esperava descobrir. Lembrava-Me a pergunta não a tendo como tal. Faltava-Me a resposta sem ser necessária. Era profundo na minha intimidade. Não existiam esferas que me pudessem rodear. Não havia envolvente porque nem ar respirava. Respirei-Me peixe, livremente fora de água. Não era somente ar. Em frente, e nunca o chegar. Era a falta dele que me denunciava na respiração. Agora, que o dia era azul, agora laranja em todo céu, era conforto e calor. Passo a passo era a linha residual que se projectava atrás do andar, linear, por causa do infinito atrás de mim. Recordei-Me neste momento. Não havia infância, não seria senilidade. Consciência e imediatamente passado. Não era recordação. Queria em mim velocidade. Laranja no alvo e uma seta em sua direcção, sempre maior sempre a si direccionada. Dividia-Me em passos que embora sucessivos eram diferentes dos anteriores, cada vez mais em frente, cada vez mais limitados em dimensão e sempre em linha recta. Falava de dentro para mim, noite, dia, liminar e locomoção. Por baixo dos pés não era chão. O ar demasiado que não acredito. Definia-Me inexistente e amplamente infinito. Podia parar por aqui, mas a força que se descarregava sobre os meus ombros impelia-Me em rumo. Não era direcção, essa previamente definida. Seria decisão por que movimentava. Continuava o dia, a meio dia da existência. Na imagem em redor, que aqui descrevo como paisagem, nada havia de novo. Apenas a luz que agora perpendicular eliminava qualquer outro eu em rasto bandeado. A sombra mensurável. O reflexo no espelho. Estaria eu a andar. Nem mais uma pergunta, respondi-Me. Agora, nem laranja nem menos tangerina, somente um céu aberto em todo o seu esplendor, azul, finito em cor, estampado como numa fotografia. No entanto, era o calor que me fazia leve, como qualquer imaginário de leveza em contraste com o meu corpo que de momento se arrastava, como uma pena. Sede, não a via. Muito menos vontade de saber o que era. Vontade somente. Esse meu trilho que não desaparece, que cresce na sombra da minha existência. Cada vez maior ou qualquer outro sinónimo que defina crescente em todo o seu sentido. Óbvio, não é. Cada vez maior prendeu-Me a atenção. Não me lembro de ter parado. Acho que continuei a andar, não sei. Sim. Não. Não continuei a andar. Imobilizei-Me. Parado a primeira e última vez, o suficiente para descrever a infinita linha por mim impressa. Num chão, que não o era. Mas, subitamente desviando o olhar sabia perfeitamente enquadrar-e entre início e fim. Ontem e amanhã, passado e ultrapassado. Por mim, em pegadas de alegoria. Só azul em frente, tomando-o como rumo. Atrás, laranja cada vez mais forte. Sabia-o e nem por um instante senti curiosidade em aprová-lo. Comprovação de estado, era supérflua. De dentro, apenas uma luz fantasiada de ideia. Ou um céu, aberto em seu interior. Como isso não fosse suficiente. Por fora, apenas a tarde. Tangerina com reflexos de limão. Cada vez mais quente, no breve calor que agora aquecia o meu corpo lançando no horizonte uma silhueta, do meu eu. Grande, como qualquer sombra projectada em fim de tarde. Durante algumas horas foi esta mesma sombra que me mantinha consciente, nunca ilusão, muito menos miragem. Absorvê-la, na geometria casual, mutável e ao mesmo tempo para mim, simples. Simbólica. O que foi pontual e referido como sombra inexistente, por mim, a algumas horas de distância, ou dias não me lembro, era uma linha esticada em fundo, sem volume aparente, que fugia com o chegar do fim da tarde.No tempo, onde o estar-Se não existe, um tempo onde o tempo não o é, um tempo e um espaço imaginados, longínquos como qualquer outra nuance de infinito. Era noite, ou o dia que se fechava. Desejei ouvir música. Vezes sem conta, e esta voz interior que me diz tanto e com razão. Ritmo apenas o resultante do contínuo bombear do coração, do meu, embora não o sentisse. Talvez apenas um pulsar das mãos que teimosamente permaneciam imóveis, adjacentes aos braços sempre estirados pela gravidade que pouco a pouco parecia devolver-Me. Tentei lembrar-me de uma música e nunca as minhas orelhas se abriram a qualquer harmonia, apenas andamento. Em contexto de brincadeira. Não era de hoje o problema de surdez. A ausência da fala. Mudez de qualquer palavra era irmã acompanhante do abafado rugido maternal. Deixei três filhos para trás, numa tentativa vã de me ver livre deles. Avô. Porque nem sempre se recordava. Mulher que não tive e o meu último irmão, meu avô também. Nunca fui pai. Vagabundo sem fim, com um brilho nos olhos. Uma trova de tios. Fins de tarde numa casa de campo, e o Sol. Não o via, simplesmente. Palavra, só recordação. Palavras definidas por convenção, não por nós, porque de momento palavra única simboliza-Me, em presença, não sendo para isso necessária qualquer género de explicação, muito menos significado. Denso, não é. Foquei-Me então. Creio apenas por uma única vez ter reparado por breves instantes o que por detrás de mim acontecia. Ou aconteceu, dada a brevidade do acontecimento esporádico, ou um qualquer piscar de olhos. Olhei-Me em frente. O peso na cabeça demasiado. Demasiadamente forte para se contrariar. Gravidade de colapso das primeiras vértebras subjacentes. Enrolaram-se lentamente até que todo o meu corpo respondeu. Não. No chão. Ou base. Superfície imaginada. Amparei-Me em queda antecipando-Me a uma quebra total de sentidos. Tacteei-Me a medo. Tudo estava na mesma. Ouvi-Me em diálogo, um eu interior para o eu que não o era e mais não consegui ver. Apenas uma marca. Noite, ou escuro total. Ainda não. Assumo a primeira paragem. Não, consegui, andar. Imobilizei-Me em passo pendente. A surpresa de sentir na sola do pé esquerdo a forma por mim imposta em início imaginado. Ou não. Recomeçarei tudo outra vez, de apoio em apoio até ao passo seguinte. A noite era negra, qual capa sem pontos de luz. Sempre houve descoberta, moldada na perfeição pela sola dos meus pés. E avancei, porque até agora nunca senti o contrário.
Vergílio Torres
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