quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Passado tanto tempo

já nem sei onde nos amámos – se nos corpos feitos sede, se nas palavras feitas beijo, se naquela pensão rasca feita Dubai, se apenas e só pela pele fora, feita destino sem destino nenhum. Nem interessa. Apenas sei que adormecíamos ao som da música desafinada que se escapava pelas janelas do barzito do rés-do-chão; era nessa altura que a luz atravessava o teu corpo - e não havia nenhuma luz de nenhum néon desta cidade que não te viesse dar as boas-noites - nem que fosse só para, num instante prolongado, te lavar o corpo sujo de dias sonâmbulos, lentamente, a esponjas de mares sem norte, a águas de especiarias vindas de muito longe. Mas nem interessa. Apenas sei que todos os dias adormecia a teu lado e observava curioso – sempre como da primeira vez – o estranho ritual das luzes; primeiro as violeta, depois as azuis... depois ainda, sei que acordava a teu lado, a manhã ali estava, desperta de saborosos minutos de maçã, para trincar em lentos olhares com que te percorria - como se de um barco que em ti navegava se tratasse - disfarçando sorrisos sempre envergonhados – ainda hoje estou para saber porquê. Mas, mais uma vez, nem interessa. O que interessa é que houve uma vez em que acordei só, no sobressalto do dia, sem te ver, sem te tocar. O que interessa é que tu não estavas lá. Havias ido, não sei, com os pássaros talvez, talvez com aquele saxofonista que, pensando em ti, havia finalmente acertado com a tal estranha melodia que, mais estranhamente ainda, estava sempre no tempo certo do ritmo ainda mais certo dos nossos corpos. Mas nem interessa. O que interessa é que nessa noite, na noite seguinte e nas seguintes das seguintes tu não mais adormeceste a meu lado, não mais te vi despertar. Agora percorro as noites sonâmbulo, à procura de ti em todos os néons da cidade. E só isso interessa. Só isso.

2 Comments:

Anónimo said...

Muito bom este texto! Gostei da evolução das sensações, bom trabalho!

Abraço,

Pedro José.

Anónimo said...

A passagem do desejo, ao desembaraçar das luzes e à força da saudade embriaga-nos na leitura de tal forma que conseguimos sentir os cheiros e ver a paisagem desse corpo que agora vagueia sozinho em busca do nicho em que se aconchegou diversas vezes.

Adorei.