segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Do Rossio à Rua Augusta

Insinuantes saias
formas de perfeição escondida num artefacto
acessórios de beleza, esperteza e frieza
arregalo os olhos perante a singeleza delas
o trivial que nunca sabe a normal
sentidos meio atordoados do sono recente
pouco aconchegante, pouco aquecido de fervor

Apenas me lembro da saída do comboio
da passagem pelo túnel a cair de podre
olhos arregalados para uma tragédia?
Não, apenas para a chegada
para a fuga aos odores nauseabundos
para ver as saias subidas
no trivial que nunca sabe a normal

E depois dou um jeito nas calças de fazenda
na gravata barata de supermercado
puxo os óculos para cima
e finjo que nem vejo as saias
antes as golas subidas
as formas enternecidas
trespasso-as e elas nem me olham
apenas indiferença, ou talvez cio

É tempo de descer as escadas rolantes
o cheiro pestilento
faz lembrar o mesmo de todos os dias
e todos, os mesmos dos cinco dias da semana
dos súburbios mais ou menos sujos
descemos
nas calças de fazenda
nas saias subidas
no cio para o Rossio

Ah o cheiro dos Restauradores
o fumo inalado dos escapes
da Avenida que ao perto mostra a sua fama
de mais poluída da Europa
diria que do mundo, do meu mundo
e os sapatos de marca esquisita
pisam o chão na confusão dos semáforos

Mas não, hoje não vou descer ao Rossio
saio aqui a meio, onde os pombos dormem
onde a merda dos sem abrigo tresanda
por entre as calças de fazenda
e as saias subidas
vou passar ali mesmo em frente à casa de strip
em descanso matinal,
para o febril rebuliço nocturno
que não vou desfrutar

E as escadas desço-as
pensando no dia em que desço de vez
chegando lá abaixo em cacos de existência empedernida
lanço um sorriso perante a ideia
e a saia lá sobe um pouco mais
e quase que caio para cima dela com a excitação
da ideia de ficar partido em cacos

Ah então cá vou eu a caminho do buzinão
do fumo dos tubos de escape
humanos e com carroçaria
cavalos únicos e também de muita potência
em frente uma livraria
mas a má disposição não permite esperar
ver o mesmo do dia anterior
como as saias subidas que já perdi de vista
e convém não desviar do caminho
o tempo é curto e pode não haver tempo
para a dose de cafeína matinal
para o copo com água desinfectada

O tempo é de ouro, ah a Rua é a do Ouro
apenas a tempo de me desviar para a esquerda
cuidado com os presentes dos canídeos
com as subidas e descidas do passeio
da calçada bela
e lá está a Rua Augusta
e ao longe o Arco

Há uma Igreja perto
por entre uma rua movimentada
onde os crentes stressados abrandam as vontades
de matar, esfolar e maldizer
para depois seguirem com a mesma vontade anterior
mas não é para a Igreja que eu vou
entro, então e choro por dentro
sorrindo para todos os que me rodeiam
apesar do Arco triunfante do meu lado esquerdo
estar cada vez mais sujo
e cheio de vendedores ambulantes
que até transaccionam à vista dos que não precisam de ver

E adeus que se acabou a história
já vem a polícia lá ao longe
virão buscar-me?
Ah pois, as saias subiram mais onde não deviam …

Manuel Marques

Regresso a Lisboa

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