sábado, 10 de novembro de 2007

Avatares da inocência

Dormíamos ambos no teu sono. O Outono caíra-nos do corpo e o Inverno narrava-se nos lugares do vento. Era um daqueles dias em que não nasce o mar. Nem o mar nem os sonhos nem nenhuma das idades do mundo. Chovia muito.
Fui à janela enquanto dormíamos. Ninguém nos ouvia. Éramos as únicas pessoas no teu sono. A cidade partira totalmente. Apenas uma despedida vagabundeava no que fora outrora uma rua. A tua rua. Errava aparentemente sem destino, visivelmente ébria, talvez inconsciente de que todas as outras despedidas haviam já partido. Ou talvez fosse esse o motivo da sua ebriedade, não sei. Talvez procurasse apenas o seu próprio sono. Talvez o nosso...
Falava só.
- Na chuva não se morre! - dizia.
E eu sussurrava-te plácidas gotas de chuva para que tu não morresses nunca. E não morrias. Ressuscitavas-te imóvel na tua eternamente bela placidez. E ali quedava-me, à janela, vendo-te dormir enquanto dormíamos. Éramos assim. Uma irrigação de afectos na assimetria antagónica do teu quarto. E lá fora a chuva. A chuva e a despedida na sua excentricidade, cada vez mais ao mesmo tempo em lado nenhum...
Toquei-te na respiração. Respiravas um mundo que não me cabia nas mãos. E eu, mais adiante no teu sono, resvalava na erosão esquelética de cada dia. Não sei para onde. Exilava-me num monólogo em redenção, na indecisão de não ser. E não era... Destilava regressos e supus que (ainda) existia, pouco a pouco, enquanto dormíamos. Eu e tu, dormindo ambos no teu sono.
Talvez o sono seja um excerto do silêncio todo. Uma espécie de avatar da inocência geometricamente desordenado em nós. Um pouco mais de eutanásia, algures inquieta (porque dormir é amar-te em segredo).
“Na chuva não se morre”...
Foi com a reminiscência destas palavras que acordei, mundos mais tarde. Parara de chover. O sol raiava agora, probo. Nunca coubera na despedida sem nos acordar. Chamei por ti. Levei-te à janela sobre a rua que fora outrora a mesma rua e mostrei-te o sol. O sol e os lugares do vento. Lembras-te?
Mas tu nunca mais acordaste...

4 Comments:

Unknown said...

Bom dia.
Venho agradecer o apoio relativamente ao texto que publiquei no www.cegueiralusa.com em que dou conta da situação que vivem muitos professores integrados no projecto AEC.
Colocarei o vosso blogue na minha lista de preferências.
Bom fim-de-semana!
José Carreira

Chellot said...

"Na chuva não se morre..."
Só quando acontece desabamentos e enchentes, o que não é o caso.

Beijos de Sol e de Lua.

Tiago Nené said...

genio puro de duarte temtem.

ja conhecia este texto.

está no excelente livro "o poema insone", da magna editora.

aconselho a todos.

Andreia said...

Tão bonito Duarte. Tão triste e tão bonito.
"Dormir é amar-te em segredo" Esta vai direitinha para o meu caderninho de citações! :)

(Obrigada pela dica do livro Tiago. Vou definitivamente comprá-lo!)

Beijo!