sábado, 1 de janeiro de 2011

A Morte do Cisne, A Morte da Arte

[por Pedro Gabriel - www.lituraterre.wordpress.com]

Le Carnaval des Animaux é uma peça de Camille Saint-Saëns datada do já distante 1886. Sua beleza que desconhece o envelhecimento a torna atualíssima e capaz de nos comover quase 150 anos depois de passado o contexto de sua produção. Talvez por não ter sido obra datada que, como o que se produz hoje sob o nome de arte, apenas atende a demandas transitórias a fim de angariar fama (moeda do nosso tempo) e espaço no show business (sempre mais business do que show). Arte não é o que se "faz para", não é o que o artista opera e sim o que se opera no artista tornado mero instrumento (tanto mais transparente quanto mais sublime a arte) e Le Carnaval des Animaux é exemplo dos maiores de uma certa zona de involuntariedade do artista em relação à obra, aqui expressa na vergonha que Camille Saint-Saëns tinha de sua composição. Ao finalizar sua obra notou aterrado que a mesma possuía um tom indisfarçavelmente lúdico e, considerando-a perigosa para sua reputação de homem sério, proibiu sua execução até sua morte (quando a peça veio integralmente à tona em sua magestosa simplicidade).



Suplico ao meu leitor que não proceda uma leitura daltônica e que distinga (tão bem quanto puder) as nuances intermediárias das cores que lanço nessa tela: não afirmo aqui uma concepção metafísica da arte como uma instância divina e distinta do homem que aparece quando este, renunciando aos ruídos da vida, tranca-se em um estúdio e pode simplesmente transcrever o que, já pronto, paira sobre sua cabeça. Não é disso que se trata. Entre esses dois opostos há uma confusão entre as categorias de suficiente e necessário. Evidentemente a história de vida do artista é necessária: sem a crueldade com a qual a vida nos lesa não há arte. Entretanto a história e a fronteira contextual que circula o artista não são suficientes (embora, como já dito, é algo necessário). O que transcende o necessário e aponta para a suficiência é o que está na delicada e breve zona do que não pode não ser produzido: aí está a arte. Numa bela imagem a qual cito de modo irresponsavelmente breve, Heidegger (entre um e outro passeio pela Floresta Negra) diz que o que faz a jarricidade da jarra é sua vazão e que o vazo assim o é como borda do vazio que contém.

O Carnaval dos Animais cumpre todos esses requisitos para ser considerada uma verdadeira obra de arte e, mais que todos eles, envelheceu muito bem. Resistiu à suprema prova do tempo demonstrando densidade e que tal peça comporta um dito. Mais do que isso, tornou-se matéria de mais produções que não seja o mero falatório descompromissado com o ser: as tais fofocas geradas pelo rame-rame que se tornou a crítica artística atual. Avançando para esferas interiores de si própria, a obra cresce pra fora (tornando-se imortal) e internamente (gerando crias e multiplicando-se). É nesse movimento de expansão que um de seus movimentos (Le Cygne) é destacado por Michel Fokine e transformado, ele próprio (o movimento, não Fokine) em uma peça autônoma: uma das mais belas coreografias de Ballet de que se têm notícia.



Fokine, no ano de 1905, teve o privilégio de trabalhar esta composição ao lado de Anna Pávlova, uma das maiores dançarinas russas nascida em um subúrbio miserável de San Peterburgo. Eram vistos juntos, absortos na sua soberba tarefa, nos parques e jardins admirando cisnes e lendo, juntos, a poesia de Alfred Tennyson. O resultado de todo esse investimento é uma explosão de uma beleza interior indescritível: uma das peças mais belas já apreciada pelos sentidos humanos. Com pouquíssimos minutos de duração, “A Morte do Cisne” (nome que recebeu o formato final) ilustra os últimos momentos de um cisne ferido. Com uma graça quase impossível de ser executada pela anatomia humana, o ballet mostra um suave entregar-se ao seio do esquecimento: uma morte sem resistências, sem questionamentos inúteis, sem anseio de continuidade (dignidade quase impossível para humanos). A morte aqui é apresentada como evento da vida e se é verdade o que diz Carner, que toda arte é arte por nos ensinar a morrer, encontramos mais um atributo presente nesta peça que a torna imortal. A maioria de nós vive esquecidos da morte: como se ela não fosse conosco. A boa arte no entanto nos apresenta o verso: a vida entendida como perda e não como um somatório de coisas que devem ficar eternizando essa composição que um dia respondeu por um nome próprio e que como as demais coisas no universo deve passar.


Esquecidos da morte os homens deslembram-se da arte que morre em silêncio sem que a maioria se dê por isso. Em seu túmulo, as instalações e performances dançam um ritmo fugidio feito de som e fúria (desses nos entram violentamente pela janela e por meio das tantas fontes de ruído atuais) que em breve dará lugar a outra expressão igualmente irrelevante. A arte é um cisne ferido de morte que em sua dignidade não se recusa a passar.

Enquanto escrevo tenho o grato prazer de ouvir um vizinho em algum lugar da rua aprendendo violino. Com alguma dificuldade ele maneja o arco ensaiando o Canon em D de Pachelbel. Talvez haja alguma esperança afinal.


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Imagens usadas no Post:

01) Natureza Morta com Jarro e Maçãs, tela de Pablo Picasso
02) Anna Pavlova executando sua obra prima
03) Martin Heidegger em um de seus passeios matinais pela Floresta Negra

Vídeos Indicados:

01) http://www.youtube.com/watch?v=TCMvMEzQ6y - A Maya Mikhailovna Plisetskaia, na minha leiga opinião a que melhor exerceu a mímese corporal que o ballet proporciona. Ela inseriu algumas variações no desenho original de Anna Pavlova.

02) http://www.youtube.com/watch?v=YW01o9x0Alc - Coreografia original executada pela própria Pavlova para cotejamento.

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