Na galeria de retratos do Museu da Presidência da República, está um retrato que todos acham desenquadrado. Trata-se do retrato de Mário Soares pintado por Júlio Pomar. Na sequência de uma dúzia e meia de retratos austeros, solenes, escuros, dos presidentes antecessores, surge este, geralmente qualificado de «pouco ortodoxo, inusitado, irreverente, exemplo de expressividade e modernidade, que retrata o verdadeiro Soares, descontraído e sem pose», etc.
Realmente ser-me-ia inesperado se eu não o conhecesse já, da comunicação social. Tinha-me parecido um tanto arrojado, mas não tinta atentado bem nos pormenores. Nunca tinha estado ao pé dele.
A obra de arte vista ao vivo parece que comunica melhor o que tem para dizer.
O que choca mais é a forma tosca da mão direita, que obviamente, está a gesticular, como quem argumenta. O braço esquerdo pareceu-me numa posição estranha, bizarra. Não se percebe como é que ele pode ter o braço naquela posição.
De repente, a luz. O dedo da mão esquerda, apontado para si próprio, tem uns traços curvos junto à ponta, a indicar oscilação, como na banda desenhada. «Olhe que não!; olhe que não!». O braço não é dele, é do Cunhal. Por isso o braço não parecia dele. Então reparamos que até a cor da manga é diferente. Aquele retrato conta um momento, talvez o momento mais famoso do PREC, quando os dois líderes dos dois partidos mais influentes em 75 se confrontaram em frente às câmaras da RTP.
Grande malandro, o Pomar! Quase que enganou toda a gente. Eu, pelo menos, nunca ouvi sugerir esta leitura.
Então, tornamo-nos desconfiados. O que mais terá o Pomar escondido na tela? Certamente que aquele rosa por cima da mão direita não é para chamar troca-tintas ao seu amigo, mas a cor ali muda, por efeito do gesto da mão, dum sombrio e nocturno azul, que tudo envolve, para um festivo e diurno rosa, como zona limpa de uma superfície embaciada por uma longa noite.
O Soares está numa cadeira com francas conotações de poder, por causa dos dois leões nos braços da cadeira. Está inclinado para a sua esquerda, para onde a gravata também aponta. O leão do braço direito, em traços mais conservadores que o leão do braço esquerdo, parece a cara de alguém. Quem? Esta, eu não quero arriscar. Pela cor do braço, podia ser o Cunhal; pela posição à direita, podia ser o Spínola. Aliás, o olho esquerdo do leão parece que tem um monóculo. Ou será uma leoa? Quem seria a leoa-braço direito de Soares? Parece evidente a resposta. Mas isso, só perguntando ao Pomar.
[Publicado no blogue Universos Assimétricos]
1 Comment:
Que maravilha! É o rosto do mário Soares que eu mais gostei de todos os que vi! Que expressividade encantadora!| Parabéns ao artista!
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