segunda-feira, 28 de abril de 2008

Corpo mais cérebro

Corpo: Eva, vinte e sete anos, mal ouve o despertador tocar, emprega-lhe um murro. Fecha os olhos durante um, dois minutos. Abre-os. Tem um livro em cima da mesa-de-cabeceira, sempre o mesmo livro em cima da velha mesa-de-cabeceira. Um livro escrito por um cego. Lê duas páginas e fecha-o. Levanta-se, abre a janela para observar a movimentação dos carros que passam na estrada. Cospe para a rua, acende um cigarro. Eva está nua a olhar para os carros.

Cérebro: Levantas-te da cama com a sensação de que deverias continuar deitada a aguardar pelo desenrolar do mundo. Nunca ninguém te fez feliz. Costumas dizer que não sabes o que é o amor, o que é a felicidade, o que é a alegria que se sente depois de um abraço, de um beijo. Estavas deitada porque o resto do mundo estabeleceu a regra que diz que o ser humano precisa de dormir oito horas todos os dias. Por ti, ninguém fecharia os olhos. Dormes pouco. Claro que isso não te impede de gostar de estar deitada. Pelo contrário, adoras estar deitada no meio do silêncio a ouvir o barulho que faz a civilização quando não está em actividade.

Corpo: O cigarro apaga-se e, com ele, o interruptor das ideias. Eva enrola-se numa toalha e vai para a casa-de-banho pôr-se debaixo do chuveiro. Como o dia está quente, lava-se com água fria.

Cérebro: Mais valia não saíres de casa. Os dias repetem-se. O mesmo trabalho, o mesmo ritmo, as mesmas palavras. As pessoas estão sempre iguais, mesmo quando alteram o penteado, a forma de vestir, as palavras. Se o teu patrão te aparecesse a falar inglês, não notarias diferença nenhuma. De qualquer forma, costumas dizer-lhe que não o entendes, que a tua boca não usa a mesma língua que ele. Querias ficar em casa a ver filmes toda a manhã, toda a tarde, toda a noite. Ver os franceses, os americanos, os italianos, os suecos. Ler os clássicos, escrever cartas de amor. Sabes que importância tem o acto de escrever uma carta de amor? Numa escala de zero a vinte, talvez tenha zero. Mas faz falta, sabes que faz. Não cometerias tantos erros se escrevesses uns quantos textos por mês.

Corpo: Eva está no quarto a escovar o cabelo. Olha para a cama e grita. Grita novamente, mas desta vez com mais violência. «Sai da cama, urso.» Na noite anterior, a dançar numa discoteca, Eva conheceu um rapaz que lhe prometeu mundos e fundos, que lhe beijou o pescoço, os lábios, as pernas, a vagina e as ideias. Na noite anterior, o álcool dizia-lhe que era boa ideia esquecer a amizade com a solidão e fazer reais amigos, de carne e osso. O mesmo álcool disse-lhe para levar para a cama o rapaz que lhe prometia tudo. A boa Eva, obediente, enfiou-o no carro e só o largou quando, já deitado na cama, largou a última gota de esperma. Horas depois, já sem a euforia da música e dos copos, Eva apercebeu-se de que o rapaz com quem dormira não era bonito, nem atraente. Cheirava mal e ressonava. «Vai-te embora, macaco.» Nos últimos dois meses, Eva fora para a cama com três homens. Arrependeu-se sempre, mas nunca deixou de tentar uma nova vez. O corpo pedia-lhe sempre mais um, mais um, até fazer três.

Cérebro: Pensavas que o amor era uma coisa que escolhias, que te bastava ir à mercearia comprar duzentas gramas de sentimentos juntamente com as línguas de bacalhau. Podes fornicar com quem quiseres, durante o tempo que quiseres. Mas nada de sério te aparecerá no meio da confusão. A confusão é o barulho, as conversas interrompidas, quatro pessoas a falarem ao mesmo tempo, um livro escrito em russo nas mãos de um leitor espanhol. A confusão é procurares sabedoria no meio da ignorância, é pensares que o cérebro consegue vencer batalhas que só o corpo consegue e vice-versa. A confusão é estares presa ao passado mas quereres ir para o futuro usando o corpo como ponte de ligação. Não te queiras enganar amanhã, nem nos outros dias que se seguirão.

Corpo: «Se não te levantares, mato-te.»

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