domingo, 10 de fevereiro de 2008

O amor é fodido


A minha bondade deve ter sido pouca para eu tê-la gasto toda contigo. Mas o meu amor era imenso. Escusavas de tê-lo açambarcado todo. Pobres coitadas que me levarão ao Inferno. Tão merecedoras de carinho e tão desinteressantes. Eu bem lhes dizia "Não me ames - deixa-me ser eu a amar-te"... Mas as mulheres do que gostam é amor. Sobretudo quando não há ali mais ninguém que se preste a isso.
Acordo às cinco da tarde e o meu dia, sem que eu deixe, já começou - as páginas felizes por ficarem brancas, as pessoas aliviadas por eu não lhes falar. Um dia o meu dia há-de ter um atalho à minha beira, um caminho por onde eu possa seguir - mas duvido.
Sou um eremita. Tornaste-me num perito da saudade. Não posso estar contigo. Não consigo viver. Sou impróprio para consumo - um incontestável peixe grande, fora do seu habitat, que nem sequer se conhece. Serei um lembrador, uma conservatória, com os meus assentos de mortes e nascimentos. Tenho jeito para recordar - é a única coisa que me resta fazer desde que nasci. Tive sempre consciência que os momentos e as experiências eram só matérias-primas, primeiros passos - os únicos.
Serei o teu lembrador, quem te lembra, quem te aproxima de quem eras. Não falarei com ninguém, mas ai de quem vier falar comigo. Hei-de chatear toda a gente com a tua pessoa. Ai, as histórias que vou contar, nunca mais acabarão, serão feitas só de coisas simples, como cafés e cinemas, nada de íntimo ou de interessante, só banalidades, daquelas que dão cabo de mim, que não consigo esquecer por mais uma - nem Deus, como vou chorar! Ninguém se poderá ir embora. Vai ser uma tortura. É bem feito para não se meterem com quem não foi feito para viver.
Se alguém me mostrar algum sentimento, como-o.
Hei-de ser o caseiro do teu coração, no sotão do meu. Guardarei os teus restos num caixote da minha cabeça. Serei quem se lembra de quem tu eras e em nada me impedirá o facto de eu não fazer ideia do que isso seja.
Miguel Esteves Cardoso
Foto: Katia Chausheva

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