sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Pirómanas de almas


Há mulheres que descendem do sol. Na langue inconsciência do ventre materno, firmam um pacto com o fogo. Já nascem indómitas, rebelando-se contra a força sugadora de Prometeu, que resgata o fogo dos recessos. Crescem semeando faúlhas quando respiram. Por vezes, num capricho estouvado, beijos perdidos ateiam fogo ao fado. Fervem, então, reminiscências da eternidade barricadas na aridez da ausência. Sitiada, a vida fareja os trilhos calcinados pela língua apocalíptica. Perdi-me quando, cerrando os olhos, se despenhou o silêncio da noite infinda, trespassada por trinados dos teus beijos, enraizados no vento. Resigno-me à fugacidade do teu odor nos meus poros e aceito a demência. Abraço-me porque me abraçaste. Amo-me porque me amaste. Acredito no futuro porque o amanhã existiu na tua despedida. Mesmo que não voltes, espero-te no abrigo do amor apátrida, onde jaz um sonho arfante, cansado de ser adiado.

O oxigénio rareia no inquinado ar que circula. Sorvo, com avidez, o ar pútrido, convertido em gotículas de cicuta ao desbravar o âmago. Persegue-me o ónus da verdade. Exilo-me no sono, ou nas grutas lamacentas da apostasia, soltando uivos ancestrais, pais do Verbo. Rastejo em busca de letras soterradas nas areias virgens do tempo, e descubro-me ao desvendar o teu nome, no cume de um i. Contemplo, no abismo da verdade, o mundo dicotómico, oscilando entre o éden verdejante onde habitas e as traseiras túrbidas da vida. Num espasmo, percorre-me o corpo o teu nome mutilado.

NADA

Acordo, transido, a boiar no veneno da solidão, escalando a tua língua furtiva, esse I que adia a agonia. Sorris, ingénua, quando o desespero arfante de um beijo terminal te manieta a língua, crivada pelos dentes do Quixote. Desapossada de erres, cicias um “vou partir” enrolado, convertido pela fugaz dislexia em “voupalhti”. Ofereço-me, então, à espiral da ilusão imposta de um “vou para ti”, e vivo todo o futuro que me resta na combustão da quimera.

“Para sempre?”, interrogo-te.

Não respondes. Não podes responder, porque elanguescemos, devagar, e morremos nas esquinas dos nossos lábios, enquanto, juntos, velávamos as promessas de eternidade. Bordadas a saliva, secaram.

Pelas ruas vazias, erram, loucas, memórias de beijos prometidos. Sondam os recantos cúmplices do oculto e perguntam, exangues, ao silêncio pela apostasia. Nada. Só se ouve o zumbido escarninho do vento que transporta segredos de outros corpos, crepitando nas águas que purgam o pecado. O céu chora e brada. No frio da orfandade, as memórias infiltram-se numa beata em colapso, e fumam-na. Fumam, vorazes, os vestígios de uns quaisquer lábios, procurando os teus. Eram os teus. Descobriram-te quando o fogo se apagou, e a esperança renasceu na implosão. Sobrevive? Não. Mas nunca soube que morreu.

A minha alma escorre pelas paredes crespas, onde fugíamos ao nada na pequenez de um I. Devagar, devagar, ainda mais devagar, na demente lucidez de quem não tem pressa para chegar ao fim, quando o fim já chegou. Pela rua, um meditabundo passa. Abranda, antes de cessar o passo. Contempla o desfile dolente da alma, pelas paredes crespas. Leva a mão à boca, mas embarga o bocejo, porque, pensa, “é ridículo ter sono quando temos a eternidade para dormir”. Fita o relógio, sofisticado, activado pela pulsação. Os ponteiros estão parados. Ausculta o pulso e percebe-se morto. Na face, um esgar de dor, quando um prego crucifica a alma na parede. Descobre-se amputado de alma, e vê-a desenhando o teu nome truncado na parede. Perdi-a quando caí do I.

Todos os dias, de manhã, regressa àquela esquina de paredes crespas, e dorme de pé, hirto como um I, intruso no Nada. Imortaliza-te com a alma, quando alguém passa e lê o teu nome. À noite, quando se derrama o breu, incendeia-se para te iluminar, e no ar evolam-se acordes flamejantes de uma harpa insone. Toca sem cessar, louca, pela eternidade dentro, enquanto Roma arde. E Nero, lúcido, canta-te.

Há mulheres que descendem do sol. São pirómanas de almas.

Vítor Sousa
(Estranho Estrangeiro, por Terras de Vera Cruz)

1 Comment:

Coccinella said...

Talvez não subscrevas, mas este para mim nunca encontrou par. Por vezes tememos que a beleza não seja perene. Mas a labareda em prosa, para mim, alcançou esse estatuto. Um beijo.