domingo, 18 de novembro de 2007

Onze contra onze


Dentro de um verde campo rectangular, estão duas equipas que não desejam mais nada do que a vitória. Os onze jogadores de cada uma das equipas espalham-se pelo relvado de forma natural. Isto é, os elementos defensivos tentam aconchegar o isolado guarda-redes, os médios põem-se no meio-campo, os extremos colocam-se junto às linhas laterais. Aos avançados ficam reservadas as complicadas tarefas de tentar ultrapassar os elementos da equipa adversária e de conseguir enfiar a bola dentro das redes inimigas. Fica sozinho lá à frente, o ponta-de-lança de uma das equipas. É apenas um. Do fundo do banco de suplentes reservado a esse mesmo grupo desportivo, grita um sujeito gordo e feio que é para jogar em 4-5-1. Olhando para o referido homem, os jogadores dão gritos de obediência e esforçam-se por demonstrar virilidade nos comportamentos. Escarram para o chão. Coçam os testículos. Do outro lado, a coisa não melhora para o avançado. Sozinho. Dá uma patada no chão, como forma de protesto.

Onze jogadores de um lado, onze jogadores do outro. Vinte e dois jogadores dentro de campo. Quem ganhará?

Começam os remates, as faltas sujas, as agressões. Um número sete agride um número dois com uma cotovelada nos dentes. Surge sangue nos beiços de um e ódio nos olhos do outro. Um jogo de futebol é quase como uma batalha: não se pode brincar. E não é só pelos pontos, ou pela chamada vitória, que não se pode vacilar. Um homem, quando se põe a correr, a transpirar, não pode perder. Se uma pessoa leva com um cotovelo na boca e começa a sangrar que nem um boi com a farpa nas costas, desaparecem as hipóteses de uma partida ser amigavelmente conduzida. Um espadachimque com falinhas mansas terá pouca vontade de ganhar. Do mesmo modo, o praticante de futebol que não deseje perder, não poderá calçar as chuteiras pensando que o pé não se magoará. O pé vai doer, precisa de doer. Numa jogada de sorte para um dos avançados em jogo, o guarda-redes deixa escapar uma bola quase parada por entre as pernas. O treinador gordo e feio dá um pontapé numa garrafa de água e põe-se a esbracejar no ar. Tem vontade de ir embora. Não gosta de perder. Numa fase mais adiantada do desafio, a equipa que está a perder consegue enfiar um remate portentoso dentro da baliza adversária e coloca-se em posição de igualdade.

Os primeiros quarenta e cinco minutos esgotam-se. Intervalo.

No recomeço da partida, há mais um golo. Dois a um. Cinco minutos depois, três a um. Aos setenta minutos de jogo, uma das equipas encontra-se a perder por oito golos de diferença. O treinador gordo e feio, sentindo-se humilhando, não se consegue afastar de pensamentos apocalípticos.

«O mundo vai acabar e ninguém me salva», sussurram-lhe os espíritos da derrota ao ouvido.

O desporto profissional é assim: para que alguém vença, é preciso que alguém se afunde. Neste caso, quis o destino que alguém se afundasse quase ao ponto de não conseguir respirar. Mas a situação não é tão dramática quanto possa parecer. Na semana seguinte, haverá um outro jogo, uma nova oportunidade de conquistar o que esta semana escapou. E não se sabe se, de futuro, a sorte não estará do lado dos bons e dos justos, que são os que desta vez perdem por largos números. Quando aplicado ao futebol, o conceito de desespero torna-se muito fútil. O que hoje é mau poderá ser bom amanhã. Os mesmos jogadores de hoje poderão jogar melhor amanhã.

Explique-se isso aos adeptos.

Não existe racionalismo possível dentro do corpo do homem que, no meio de uma das bancadas, solta gritos de leão. Quer confrontar os responsáveis pela derrota. Quer esmurrá-los, se possível. Acaba por acertar com o punho fechado num dos seus colegas do lado. Em fracções de segundo, gera-se uma confusão do tamanho dos Himalaias. Aparece a polícia e acentua o carácter violento do diálogo entre as claques. A polícia tem, no entanto, algo que joga a seu favor: o bastão é forte e, quando acerta num crânio, não perdoa.

O jogo chega aos doze golos. Onze a um.

Disparam-se tiros para o ar.

Um rapaz de vinte e poucos anos perde a vida a caminho da ambulância.

Os vinte e dois jogadores continuam a jogar até ao final. Estando todos vivos, não existem razões para que uma partida acabe antes do tempo. Ninguém foi expulso, ninguém se lesionou. A menos que uma derrota volumosa conceda o direito de fuga à equipa que perde. Não. Noventa e três minutos serão cumpridos. Depois, apertos de mão. Uns discursam sobre a vitória, outros falam sobre humilhações, sobre falta de amor à camisola. A verdade é que uma facada dói sempre. Olhe-se para a cara do treinador gordo. Abatido, as olheiras parecem atingir a profundidade de um poço. A suor escorre-lhe pela testa, acabando por molhar a gola da apertada camisa. Não se prevê nada de bom para este desgraçado. Demitido. Desemprego. Qualquer coisa. Se calhar, até será ele a não querer voltar a sentir uma derrota daquelas em cima dos ombros. Sente-se envergonhado quando olha para o treinador do clube adversário. Finge um sorriso, tenta conter o choro. O futebol é desporto para bravos e para valentes. Quem chora, não faz parte deste mundo. Ou não. Em casa, o treinador gordo e feio desfazer-se-á em lágrimas.

Do lado dos vencedores, há um grande silêncio. Olhando para a cara de quem perdeu por muitos golos de diferença, não há vivalma que seja tão sarcástica ao ponto de rir, de festejar. É uma vitória silenciosa, portanto. E é essa mesma vitória sem palavras que faz com que, do meio do murro e da asneira, se levante uma pequena palavra que, por vezes, ganha um certo sentido: civilização.



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