domingo, 18 de novembro de 2007

O Medo

Abandonada a carcaça no exílio túrbido dos lençóis, os percevejos do medo libertam-se e alastram-se, ferinos, num desfile de espectros autófagos. Um espasmo assusta-os, interrompendo o banquete. Calam-se e emerge o silêncio, que impõe a audição de um ininterrupto gotejar. As pingas despenham-se ao ritmo cardíaco. Os poros vomitam medo. Os olhos choram esperança.

O calor das mantas sobrepostas não esmaga o frio que escama a pele ressequida. O corpo, inane e fetal, não reconhece como sua criação os espasmos. São bastardos, filhos do medo. O medo, esse germe hereditário, cresce na penumbra como um insurrecto adiado, dissimula-se e agoniza perante o júbilo, nutre e parasita a dúvida, expande-se no opaco, perfura os tabiques, infiltra-se no consciente e, ascende, feérico e pleno, ao comando da entropia.

Um barco dorme, embalado pelas águas plácidas de um ancoradouro. O casco, descorado e corroído, denuncia decrepitude. O sono é arfante, de desespero crepuscular. Soltam-se frémitos de agonia que o vento transporta, estilhaçando a harmonia da noite. Mas ninguém os ouve, além de mim. Alguém se esqueceu de estender o breu àquela cabine alcandorada, vigiando uma luz tíbia e bruxuleante as insónias da madrugada. A luz pardacenta infiltra-se nos recessos habitados por sombras enraizadas no olvido, degredo de memórias sem guardião nem sepulcro. Lágrimas que o sal conservou ameaçam, há anos, despenhar-se, num pranto ancestral e cósmico que não escorre porque o medo o petrificou. Ancoraram-se nas súplicas titubeantes, como lamentos evadidos ao açaime da virilidade. O choro da Humanidade sem pátria que embarcou num cais obscuro e fareja uma Ítaca sem mar.

Sou o único marinheiro. Para não me sentir só, vivo por todos. Não. Choro por todos. Sim. Vive em mim o choro de todos. Sinto em mim o medo de todos. Perdi-me.

Perdeste-te. Anulei-te. Sou o medo.

Podia jurar que ouço a voz do medo a tactear as vísceras, escalando-me, até sentir a convulsão de uma veia junto à testa.

Ouves? Sou eu. Existo, não me negues. Ouve-me outra vez…

Aaaaaaaiii.

Ahahahahahahahaha! Geme! Ahahahahahahah! Livre? Ahahahahaha! És meu. Melhor, sou tu.

O medo é um filho da puta quimérico com ânsia de ter um corpo.

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