sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Bichos

Um morto no meio da praça central da cidade. Dois polícias tomaram conta da ocorrência. Populares gritavam nas ruas. No meio da gritaria, havia uma velha que se destacava. Gritava mais estridentemente do que o resto da populaça. O clima não era de guerra civil, mas irritava.

Tentando perceber o que levara um homem a morrer no meio da civilização, os dois polícias, cheios de inclinação para o analfabetismo, escrevinhavam nos seus cadernos quase em branco. Um dos agentes apontou uma pequena nota: «Não percebo.» O outro concluiu: «Não compreendo.» Nenhum dos dois se entregava à conclusão de que um morto tanto poderia aparecer deitado na cama como no meio de uma estrada. Se a morte se caracterizasse pela previsibilidade, haveria muita gente que lhe tentaria fugir. Aos dois seguranças da pátria, só faltava chegar a ideia de que o morto não deveria ter morrido no local onde morreu.

Os populares, ao olharem para o cadáver que se estendia pelo chão que nem um copo de vidro partido, sentiam receio de virem a perder a componente fulcral da existência: o oxigénio.

«Não quero morrer, ai não, quero continuar a trabalhar e a respirar», gritou uma senhora que deveria rondar os cinquenta anos.

«Quero abrigo, escondam-me», disse uma adolescente enfurecida.

«Vamos todos morrer», explodiu a classe mais baixa da sociedade, em uníssono.

Vendo bem a verdade, nenhuma daquelas pessoas tinha razões para dizer o que quer que fosse, uma vez que estavam todas mais vivas do que alguma outra vez. Os gritos, as lágrimas, a baba e o ranho diziam tudo. Todavia, existiam razões que levavam a que até o mais silencioso dos bichos sentisse comiseração pelos uivos humanos. É que esta era uma raça que sentia medo muito antes de existirem razões para tal, era uma raça mais cobarde do que qualquer outra. Um dia, um velho foi ao espaço e, após ter visto dezenas de espécies extraterrestres, concluiu que o ser humano era o que mais nojo e pena lhe metia.

O morto permanecia estendido no centro da cidade. Um pombo que passava por aquele ar deixou cair um pequeno pedaço de matéria fecal mesmo em cima da testa do desgraçado que perdeu a vida. Um dos polícias, apercebendo-se da acção do pombo, disparou um tiro para o céu. Como o pombo era rápido, conseguiu fugir da bala, que já se escapava em direcção ao sol. O outro polícia pôs-se a olhar boquiaberto para o seu colega.

«O que foi isto?», perguntou.

«Devemos cuidar dos mortos como se fossem vivos.»

«Se fizéssemos isso, ninguém morreria.»

O povo assustou-se com o tiro e desatou a correr de um lado para o outro. Jesus entrava na boca de todos e faziam-se promessas de queimar velinhas em memória dos santos. Os corpos menos resistentes ao choque começaram a tombar no chão e a ser atropelados por autênticos camiões de carne. Ouviram-se ossos a estalar. Um velho sentiu uma bota de biqueira de aço a partir-lhe a cana do nariz.

«Viste o que fizeste?», perguntou o polícia que não disparou ao aprendiz de xerife.

«Vi. Queres mais?»

Deu outro tiro para o ar. Riu-se. Após um breve momento de hesitação, disparou um outro tiro, desta vez não em direcção ao mundo dos deuses, mas apontando para umas crianças que corriam malucas. Acertou numa delas mesmo em cheio na têmpora do lado esquerdo.

Estava tudo louco.

Um honesto e humilde trabalhador fabril, assistindo a tudo o que se passava como se estivesse a olhar para uma televisão, decidiu intervir. Sem que ninguém o visse, atacou um dos agentes da ordem pública com uma pedra de calçada. O polícia tombou logo ali, morto. O outro polícia, que gostava mais de dar tiros do que de falar com mulheres, disparou sobre o trabalhador fabril.

De repente, tudo parou. Estava-se a meio da tarde e, sem que nada previsse, o sol acabava de desaparecer.

«É o fim do mundo.»

O medo era total.

Pensou-se em Deus e no Diabo. Houve gente que rezou.

«Pai-nosso que estais no céu…»

O polícia louco começou a disparar para o céu, tentando furar o negro que o cobria.

Apareceu um ponto. Via-se que era qualquer coisa nova. O ponto começou a crescer, a crescer, até se tornar perfeitamente identificável. Era um abutre. Depois desse primeiro abutre, muitos outros apareceram. E também estes famintos bichinhos se puseram na festa.



Também aqui.

1 Comment:

LÉRIAS said...

è um prazer passar aqui!
Espero vir mais.

o meu "canto" é também a nova forma do Frioleiras que creio que alguns, como a Ana Prado, já conheciam