terça-feira, 9 de setembro de 2008

Problemas



Morrer é um problema. Perder a respiração ou ficar debaixo de um camião. Morrer é um problema. A pessoa sabe que vai desaparecer e tem medo de que não haja mais nada do que isto. Isto. Este bocadinho de nada. A Terra. Tão bonita e tão cheia de lixo. A pessoa vai morrer e não quer admitir que está velha, cansada, e que precisa da ajuda de todos. É um problema grave, o da morte. O de se ir chegando a um final, a uma meta sem prémio. Não há nada pior do que se saber que os doutoramentos, as roupas e as festas de agora, pouco sentido fazem perante a evidência de que o corpo animal se vai deteriorando progressivamente, até se tornar num pequeno pedaço de excremento e depois de cinza. Mas há a vida, dizem. Há a festa. Há a luz, o sorriso, o Sol, o amarelo, um vestido de mulher na Primavera, o cigarro, a cerveja, os filhos, os pais, o Carnaval, a felicidade. Na verdade, há tão pouco, mas tão pouco, que, se tivéssemos real percepção da quantidade de momentos bons que vamos tendo ao longo dos dias, acabávamos com a reserva nacional de veneno para os ratos. É tudo muito triste. O neto rezar todas as noites para que a sua avó não morra. A avó desaparecer. O neto crescer, tornar-se avô e também ele morrer para os seus netos. Os ciclos, pois. Uma mãe dar à luz uma pequena criança morta. Um cidadão vulgar assistir ao atropelamento de um desconhecido. Um grupo de adolescentes pegar em armas para matar. O expirar. Como o passaporte. Expiras no ano x. Acabas aí. Como é que alguém se convence que vai desaparecer, deixando o mundo continuar a sua trajectória habitual? Querer que o Elvis não tenha morrido. E o Morrison. E o Dean. E a juventude cada vez mais velha. Os cabelos a ficarem brancos, os pêlos no nariz, os dentes amarelecidos, acastanhados. Pretos, podres. Estúpidos, os dentes. O amor eterno. O casamento. Declaro-vos marido e mulher. É para sempre, meu amor? É, minha queridinha, meu mais que tudo, meu sei-lá-que-mais. Pode beijar a noiva. Beije a noiva. Beije-a. Um beijinho. Atirem arroz aos noivos. Deixem-nos correr para as varizes. O rapaz e a rapariga debaixo de uma árvore num dia de Agosto. Com um canivete, desenham um coração na madeira. Ele ama-a. Que bonitos. Vais ficar comigo? Sim, claro, que pergunta. Para sempre? É para sempre que aqui ficas nos meus braços? Sim, é para sempre. Vamos sobrevoar o espaço e as estrelas e os planetas. Vamos abrir uma cova e enfiar os nossos ossos lá dentro, para que nos ponham flores cheirosas. Para que nos chova em cima e para que os vermes nos comam. Os bichos. Adoro animais, não adoras também? Muito, meu doce. Especialmente quando nos comem os pêlos, a pele, a carne e o osso. Quando nos desfazem, quando nos transformam em fertilizante natural para o pasto das vacas, dos bois. O progresso, o contínuo caminhar até ao desaparecimento. Nascer com ideias, com sonhos, com projectos. Querer ser arquitecto, estudar vinte anos, exercer vinte anos, acabar com um cancro espalhado pelo corpo. Dor infinita. Morfina. Quimioterapia. Qual a sensação de começar uma carreira de escritor? A mesma de apanhar uma pneumonia, ficar de cama. A mesma de pregar um prego no pé e ir a correr para o colo da velhinha que já não cá mora. O ter um livro, um quintal, uma beterraba a nascer. Problemas.

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