segunda-feira, 23 de agosto de 2010

II

O meu apetite é fugaz, tem pressas, tem fome.
Quer comer rápido e sair. E seguir.
Não consegue esperar. Não se importa se a cebola fica crua ou se a carne fica um pouco queimada.
O meu romance não tem lume brando; tem uma chama ardente e fugaz, de um fósforo que acende rápido e depressa se apaga.
Mas o meu amor quer aprender a servir um prato quente.
Quer degustar...
E o meu romance tenta.
Ao lume, está já um tacho de água quente e umas pedrinhas de sal.
q.b.

domingo, 8 de agosto de 2010

Quanto tempo dura o amor?


A raiz filológica da palavra amor guarda alguns mistérios. Palavra que tem sua origem no latim arcaico (como a maior parte do léxico de nosso vernáculo, bem como suas regras e sintaxes) praticado na Roma antiga, resume em si uma enorme gama de sentidos. Pode significar desde uma leve afeição até a mais cega paixão comportando, na história de seu uso, todos os tônus afetivos intermediários a esses dois extremos, tais como a compaixão, a misericórdia, o apetite sexual, etc.

Mais prudentes que os romanos, os gregos reservavam palavras distintas para afetos distintos. Daí surgiram eros, ágape e filia para as principais modalidades de amor que variava quanto ao objeto dos investimentos afetivos, sendo eles, respectivamente: a contraparte sexual (eros), o semelhante (ágape), o familiar (filia). Embora os romanos possuíssem outras palavras para o amor (dilectio, charitas, etc), estas eram quase sinônimas, de modo que para estes o amor permanecia soberano em seu mistério e em suas contradições.

Fernando Pessoa, poeta Maior, pôs a questão do amor nos seguintes termos: “Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?”. Salienta aí a suprema gratuidade do amor que não guarda em si MOTIVOS para sua ocorrência. Não se ama por uma razão específica. Padre Antônio Vieira, um dos maiores oradores da história luso-brasileira, disse em um de seus discursos que “quem tem um porquê para o seu amor não é um amante, mas um pagador de favores; e quem ama ‘para’ um bem além do amor não é outra coisa senão interesseiro”. Ainda sobre a gratuidade e a não inscrição do amor nos padrões da lógica, Drummond refuta um famoso adágio popular escrevendo “As Sem Razões do Amor” afirmando que amor NÃO se paga (nem mesmo com amor). Amor: fruto que se semeia no vento, foge a qualquer regulamento e se impõe como irmão do ódio (como diz o psicanalista Jacques Lacan) e primo da morte (como afirma Drummond no mesmo poema).

Sigmund Freud, em sua postura estoica diante da existência, antecipou todos esses poetas ao afirmar o impossível do Amor bem sucedido salientando os aspectos incontornáveis da solidão humana (que se atualiza na solidão cotidiana do dormir, do acordar e se cristalizará na solidão última do morrer). Jacques Lacan, continuador de Freud e um dos mais argutos observadores atentos da condição humana, elegeu o Amor como uma das três principais paixões do ser: ao lado da Ignorância e do Ódio, o Amor figuraria como uma das questões cruciais da existência.

Confundido com o mero “habitar com” as pessoas costumam responder aos apelos do amor negando o que este tem de impossível elegendo para si mitos tal como é expresso popularmente nos ditados: “a tampa da panela”, “a metade da laranja”, etc, considerando haver no mundo um duplo de si próprio e que, ao ser detectado no meio de tanta gente que vem e vai, aniquilaria por sua simples presença os impasses do amor. Influenciados pela herança platônica do amor entendido como um reencontro de partes outrora separadas, os códigos sociais de uma união “até que a morte os separe” reforça essa ideia de que o amor deve durar na saúde e na doença, na felicidade e na infelicidade, na agressividade, no flagelo do outro, na crueldade, fazendo com que os casais (num misto de obediência aos códigos sociais vigentes e das sobras que os conflitos geradores da personalidade têm de influenciadores no presente) esperem situações críticas (ocorrências de crimes e às vezes até mesmo a iminência de morte) para oficializar um desenlace.

Eis o principal engano do amor: considerá-lo infinito e maior que a vida. Nessa aposta os amantes se fazem surdos aos sinais de que a vida necessita de uma reinvenção e da tomada de novos rumos para que ambas as partes possam experienciar o cotidiano sem o sentimento de que andam pela vida carregando bolas de aço (como os grilhões arrastados penosamente pelos prisioneiros das masmorras).

A complexa teia de afetos conflituosamente inconscientes que marcam a subjetivação de toda pessoa sempre deixam restos que, no dizer de Freud, retornam em forma de repetição e na chamada Pulsão de Morte. Esses vestígios da infância que assombram todo adulto são os principais responsáveis pela falta de liberdade em reconhecer que se a vida (que é maior que o amor, pois o amor ocorre dentro desta como uma de suas experiências possíveis) acaba, o amor que é uma de suas experiências possíveis não precisa ser necessariamente eterno e imortal (posto que é chama, para citar outro poeta). Ser “infinito enquanto dure” o encanto, o respeito e a capacidade de convivência sem conflito dariam por si a medida exata da beleza e da plenitude do Amor.

Evidentemente não excluo a possibilidade de que esse tempo do Amor possa ter a duração de uma existência, atando-a de ponta a ponta, ou mesmo transcendendo-a. Romântico que sou, busco uma companhia para toda a vida. Mas reconheço que um amor duradouro somente pode resultar de um conjunto de afinidades profundas entre os dois amantes e de uma disposição mútua para essa permanência irrestrita. Minha experiência demonstra que a tal “delícia de sentir as coisas mais simples” como fala Manuel Bandeira só pode advir de um certo costume, oriundo da convivência habitual e persistente, entre os amantes.

O exercício de se observar criticamente o cotidiano demonstrará exatamente o contrário, que as pessoas entendem a companhia com o outro (flerte, namoro ou casamento) como experiência necessária independentemente de haverem ou não afinidades. Como se qualquer companhia (mesmo aquela que transforma o cotidiano num inferno) fosse alternativa melhor que uma velhice solitária. E nisso vão protagonizando uma história de amor que só muito tardiamente é reconhecida como fracassada. Por essas imbricadas razões que transitam livres nas ruas de sombras em que se constitui o coração humano (uma obscura cidade de surpresas), as pessoas vão enganando-se imaginando que tudo está bem e o amor é algo possível sem maiores cuidados. Como diz um amigo: cultivam o amor como deus cultiva batata.

Que meus leitores (se é que tenho algum) não entendam que postulo aqui a inexistência do amor. A vida está cheia de suas demonstrações. O que postulo é que ele seja uma experiência passageira e fugaz sobretudo para quem o encara como um jogo já ganho. O amor como “o que se aprende no limite” e como “o ganho não previsto” (duas belas imagens drummondianas) revelam o amor como uma causa perdida. Para os que assim encaram, os que sabem dos melindres dessa experiência, das diferenças incontornáveis entre homem e mulher e da natureza vacilante do amor (que na mitologia é filho de poros e penia, fartura e demanda) ele pode trazer uma fagulha de eternidade.

Tom Jobim e Vinícius de Moraes arruinaram minha vida. Fizeram de mim um românico esperançoso crédulo no amor verdadeiro que um dia vem (se é que vem) e para ele sigo o conselho drummondiano de me guardar todo e inteiro. Entretanto entendo que a vivência plena desse sentimento que nos torna magníficos está diretamente relacionada à capacidade de se suportar a si mesmo. Eu ousaria dizer que quem não está pronto para a solidão não estará pronto para o “viver com”. O modo sórdido e traidor como as pessoas vivenciam seu rame-rame cotidiano a que chamam de amor talvez clame pelo contrário, mas ouso aqui também afirmar algo ainda mais subversivo para ouvidos calejados de descrença: ouso pensar que duas pessoas que possuam afinidades profundas e estejam cientes dos zigue-zagues da condição humana (e nela a experiência do amor) podem (se assim desejarem) construir uma concha de amor e recolhimento onde é possível a fruição de todo o encanto prometido pelos mitos, pelas canções e pelos poetas mais lúcidos. Eterno enquanto dure. Duradouro para sempre na gratuidade com que se propõe a saciar a nossa sede infinita.

(por Pedro Gabriel - pedro.gabriel@ymail.com - http://lituraterre.wordpress.com)